segunda-feira, 28 de março de 2011

Pedro Miséria o Herói das Ruas


(Fragmento do livro Álcool Ajuda ou Autoajuda - Fred Explica - 1999)
Nota: Os textos postados neste blog não obedecem a nenhuma ordem cronológica.
(...)



"Imaginava o sofrimento e as lágrimas que escorreram naquela face que de tão deformada e tortuosa, haveriam de contornar rugas e cicatrizes de forma a encharcar as barbas e nunca caírem no chão..."



Pedro Miséria, uma figura incomum, contou-me sua história, extraordinária e romanesca.
Era mendigo por opção e poucos sabiam da sua verdade. Eu me incluía no pequeno rol dos seus confidentes.
Dizia ele, com uma narrativa que fazia notar uma cultura enriquecida pelas nuanças dos detalhes, que fora bem situado na vida.
Foi empregado de um grande grupo financeiro com a função de transportar valores pelo país.
Antes do infortúnio que o destino lhe reservou era muito bem casado – mulher bonita e filhos bonitos.
Constituiu uma família na classe média e se estabilizou emocional e financeiramente.
Pai de três filhos ainda crianças, não fugia das obrigações do lar, ao contrário, toda sua luta profissional era motivada pelo paraíso conquistado.
Numa das viagens aéreas do seu trabalho, o pequeno avião que sobrevoava a floresta amazônica sofreu uma pane, caindo sobre a região.
Por milagre, conseguiu sobreviver dos destroços e do incêndio que se seguiu a queda que vitimou os demais tripulantes.
Estava com ferimentos generalizados.
O lado direito do rosto com um corte profundo e várias seqüelas espalhadas pelo corpo.
Foi recolhido por indígenas e suas feridas tratadas com os recursos da mata.
Sofreu amnésia por um longo período.
Suas lembranças lentamente começaram a mostrar alguns lampejos como uma casa, um pequeno jardim, uma praça com uns coqueiros enfileirados e um palácio.
Não conseguia construir uma frase.
As coisas que apareciam em seus sonhos não tinham nome – somente figuras.
Seu cérebro, estancado, o atormentava com uma angústia que vinha não sabia de onde, insistindo em lhe mostrar que seu meio era outro, até pela diferença física em relação aos indígenas que o socorreram.
Para se fazer entendido, comunicava-se por gestos e sons guturais.
Era o foco dos cuidados.
Batia-lhe, sempre, a necessidade de voltar.
Mas voltar para onde?
Vou resumir, para não roubar de todo sua história.
Depois de quatro anos recuperou a memória e retornou a Belo Horizonte com a intenção de retomar o convívio com os familiares.
Muito tempo houvera passado.
Tomou a decisão de não se revelar sem, antes, ver como estava a situação.
Guardava distância com a convicção de que deveriam, com toda certeza, acreditá-lo morto pelo acidente.
Sua vida desabou no instante da constatação.
A esposa casara-se novamente.
Um bom homem entrara em sua vida dando-lhe, além de uma condição tranqüila, muito carinho tanto para ela quanto para os meninos já, então, rapazes.
Pedro olhou-se no espelho.
O sofrimento havia-lhe roubado as expressões de felicidade.
O trauma físico e os acontecimentos subseqüentes o transformaram numa triste figura.
Não era justo aparecer do passado e jogar sobre as costas das pessoas que amava todo o seu sofrimento.
Tomou a decisão do anonimato.
Ficaria pelo resto de seus dias nas ruas da cidade usando a inteligência que possuía como meio de sobreviver na mendicância.
Começou a falar errado de propósito, andar maltrapilho e usar o poder do convencimento para conseguir os meios de sustentação. Assim, poderia, com freqüência, acompanhar o progresso dos seus entes queridos, fazendo dele suas conquistas.
Certa vez tentei saber dos detalhes que confirmariam a fantástica história, mas, bastava qualquer investida com este objetivo, para o personagem se afastar praguejando.
Inviolável segredo.
Uma confidência que deveria ser guardada somente até o ponto revelado.
Não aceitava conselhos e, ai de quem insistisse – Pedro se afastaria para sempre.
Aconteceu um diálogo entre ele e meu pai que ilustra a história:
- Quem está à porta?
- É o Pedro Miséria, meu pai.
- O que ele quer?
- Um trocado – deve ser pra tomar pinga! (nessa época eu não conhecia sua história)
- Manda ele esperar que já vou.
Chegando, disse com seu jeito de bom samaritano:
- Pedro, você está magro!
- É a vida dotô, tô sem trabaio.
- Pedro, você já ouviu falar de impasse?
- Aquelas coisas de jogadô de futebol, né?
- Não, aquilo é passe, é outra coisa. Vou explicar: você toma pinga porque está desempregado e o pessoal não te arruma emprego porque você bebe - isso é impasse!
- Ah, entendi! Se eu deixar de beber eu arrumo emprego.
- Não é bem assim. Você tem de se preparar um pouco - você chegou a estudar?
- Estudei, dotô, mas acho que esqueci tudo.
- Sabe ler, escrever, fazer contas?
- Sei contá os trocado que arrumo de dia.
- Pedro, qual é a sua idade?
- Tô com cinqüenta e pôcos, dotô.
- É, faz seguinte: toma aqui um trocado e esquece a nossa prosa.
Pedro freqüentemente desaparecia nos seus refúgios de ermitão.
Embrenhava-se pelas matas da Serra do Curral, na direção de Nova Lima e, lá de cima, rodeado de flores silvestres, sentia o aroma da natureza e via o horizonte contrastar com as edificações urbanas e o exuberante verde das montanhas.
Ali o personagem entendia-se com Deus, acalmava seu espírito e voltava em paz.
Dizia, que se assim não procedesse, acabaria para ele o sentido da sua vida miserável.
Verdadeiramente e, ao seu jeito, eu o considerava herói.
Um homem despojado e generoso.
Imaginava o sofrimento e as lágrimas que escorreram naquela face que de tão deformada e tortuosa, haveriam de contornar rugas e cicatrizes de forma a encharcar as barbas e nunca caírem no chão.
Uma barba embevecida de sofrimento.
Esse era Pedro Ignácio Batista e suas iniciais como por ironia, fazia com que a maldade politizada de alguns companheiros mais velhos o chamassem de PIB, com referência clara à semelhança física do personagem com o nosso Produto Interno Bruto.
É, não deixava de ser!


(...)

Fred, 28/03/2011

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