quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

Dissolução


Penas do Tiê (Heckel Tavares e Nair Mesquita) - ZZFred



Rosário não é mulher é povoado.
Mesmo assim, paixão inexplicável. 
Simples e não simplória.
Agreste, não agressiva. 
Refúgio de quem não foge.
Procura não sei o que.
(A solidão cosmopolita, é a pior multidão possível)
Caverna da paz idealizada.
Igual a infância, antes da segunda infância.
A terceira, como semente, só depois da montanha.
A última. 
Suficiência do sentimento audaz. 
Possibilidade do sossego impossível.
Flor do Guimarães, o Rosa.
Fora sede de fazenda.
Hoje sede de garganta seca.
Sede de garganta seca.
Fruta de tempo no tempo certo.
Sabedoria do humilde sertão.
Verde de maldades.
ZZFred, janeiro de 2011


"Não gosto desse passarinho. Não gosto de violão. Não gosto de nada que põe saudades na gente."
Guimarães Rosa

terça-feira, 25 de janeiro de 2011

Ares do presente passado

Este vídeo é uma metáfora sobre as guerras.As Time Goes By" foi tema de Casablanca (1941) e talvez a mais bela canção para essa finalidade.  Proponho uma reflexão utópica ao mostrar que as aeronaves podem se dar ao espetáculo da beleza a despeito da finalidade com que foram projetadas.  A música foi composta por Herman Hupfeld em plena segunda guerra mundial.
ZZFred, janeiro de 2011

quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

Rabugices

Maluco Beleza de Raul Seixas na minha modesta interpretação

Mal humorado, ranzinza, rabugento, sei lá.
Às vezes me dou mal com essa mania de enxergar as coisas com desconfiança, procurando, sempre, os dois lados dos fatos. 
Um tribunal interior frequentemente se instala a despeito da minha vontade.  Vai da política ao futebol, passando pelos avanços tecnológicos e tudo mais. 
É um tormento. 
A língua portuguesa, então, nem se fala. 
Em época de globalização, quando se deveria simplificar e facilitar o intercâmbio para o resto do mundo e não só para os lusitanos, houveram por bem complicar ainda mais.
São tantas exceções que as regras perderam de vez o pouco do prestígio que tinham.    
Irresponsavelmente, aboliram o simpático trema. 
Será que levaram em conta as dificuldades dos “alfabetizandos” (crianças ou estrangeiros adultos) que terão aumentados o volume de palavras a serem decoradas quanto à forma de se pronunciar?
Quando cursava o ginasial me proibiram cortar o sete. 
Esse número ficava parecendo com o um na minha caligrafia. Na minha e na dos professores, o que era pior .
Logo eu que dificilmente tirava essa nota nas provas, como explicaria em casa que aquilo era sete e não um?
Mesmo conseguindo, já teria levado as broncas tradicionais.
Então decidi, inapelavelmente, irrestritamente, irritantemente, contra tudo e contra todos, além de pintá-lo, também corta-lo, por toda a eternidade.
Começou a onda de Quioto ou, Kyoto, para os engajados.
Uma verdadeira tsunami apontando o ser humano como causador nefasto de todas as intempéries climáticas do planeta. 
O tempo fechou.
Idealistas, ou “ideologistas”, homens da ciência, obrando regras sobre conclusões insofismáveis.
Ai de quem ousasse contrariá-los.
Queimaria na fogueira dos incrédulos e, fim de papo. 
Não queriam nem saber se o aquecimento do Pacífico e as atividades solares influenciavam a coisa. 
Passavam rapidinho sobre temas incômodos. 
A camada de ozônio. Ah, a camada de ozônio! Vocês se lembram?
Diziam que a emissão descontrolada de dióxido de carbono dos carros e das indústrias esburacavam a coitada.
Faziam acreditar que a tal camada funcionava como uma espécie de guarda-chuva a nos proteger dos impiedosos raios “ultra-violentos” do sol.
Dizer que a premissa era falsa dava cadeia por crime hediondo. 
O furo-buraco desse guarda-chuva era furo-mentira. 
O pobre do ozônio misturado na atmosfera não tem matéria quântica para deter nenhuma radiação.
Por que não falam mais nisso? 
A floresta amazônica como pulmão do mundo, uma verdade absoluta até pouco tempo.
Descobriram ou, deixaram escapulir, que ela consome através da fotossíntese todo o oxigênio que produz. 
Devolveram, então, pras algas marinhas todo prestígio solapado.
Todo fim de ano me proponho a não mais acompanhar futebol, indignado com as inteligências malignas que estão no comando de tudo.
Essa teia de interesses há muito distanciou a prática pseudo-esportiva dos ideais do Pierre de Coubertin.   
O capitalismo, que em tudo mete as garras, detonou a paixão nacional (a esportiva, é claro...) e a minha paciência.
Ruim de metáforas arriscaria dizer que o quadro parece, mais, um bando moleques famintos arremetendo contra um pé de jabuticabas. 
Cada um querendo uma quantidade maior de frutas pro seu bucho.
Dirigentes financistas e torcedores masoquistas perpetuam esse jogo.
Falando nisso, preciso saber a data da primeira partida do meu time no campeonato.
Ninguém é de ferro, ora!
Resolvi matar os insetos do escritório com fumaça de cigarro.
Coitados, eles não entendem que estão fumando de tabela.
Os que sabem, não aparecem mais aqui para atazanar a solidão que existe.
Fred, janeiro de 2011

domingo, 9 de janeiro de 2011

Um Verdadeiro Irmão


(Fragmento do livro Álcool Ajuda ou Autoajuda - Fred Explica - 1999)
Nota: Os textos postados neste blog não obedecem a nenhuma ordem cronológica.
ZZFred
(...)


"Os mais velhos eram respeitados naturalmente e, na maioria das vezes, temidos por sua energia moral e pelo acúmulo de experiências. Nos transportes urbanos não ficavam de pé. Nem eles nem as mulheres grávidas ou não. Era natural e bonito ceder lugares, respeitosamente, a essas pessoas"
Anos sessenta 

Quando observo a insegurança das ruas de hoje e brinco que os trombadinhas da época éramos nós mesmos, não estou falando a verdade.
Realmente as esquinas tinham os seus donos e seus regulamentos de conduta, fidelidade, honra e comprometimento irrestrito com a amizade.
Lembro-me de um menino negro muito carente que ganhamos em nosso meio.
Sua cor nunca foi referência e, ai de quem manifestasse preconceito!
Destacava-se pela presença de espírito, inteligência, humor e simpatia, suas marcas registradas.
Como naquele tempo todo cidadão negro era logo apelidado de Pelé, com ele não aconteceu diferente.
Conseguiu uma caixa de engraxate e começou a faturar alto com o seu trabalho.
Era nosso protegido, irmão mais novo de todos nós que participávamos como voluntários no seu negócio conseguindo, cada um, junto aos familiares um bom estoque de calçados.
Um serviço de primeira que foi logo reconhecido pelos moradores tornando a calçada onde colocava seus apetrechos cheia de sapatos durante todo o dia.
Ajuizado, aplicava seus ganhos metodicamente.
Pagava seus estudos e ajudava os familiares.
Curioso, nunca soubemos onde ele morava e, também, nunca o perguntamos – isso não era da nossa conta.
- Cadê o Pelé?
Todos queriam saber quando passava algum tempo ausente.
Raramente faltava e, quando acontecia, causava preocupações generalizadas.
Lembro das vezes em que deixava os sapatos encostados nas paredes dos prédios e saía para tomar refrigerante e comer um salgado no Bar do Vicente localizado a dois quarteirões do seu ponto comercial.
Os sapatos, alguns de custo elevado, ficavam por ali até sua volta, por mais que tardasse.
A segurança era total, nunca houve sequer um furto na sua ausência.
Em minha juventude, no centro da grande metrópole, só me lembro de uma ocorrência policial na região.
O ladrão foi flagrado pelos moradores que estavam à janela do quinto andar de um dos prédios e, enquanto a polícia não chegava, ficavam pipocando com a boca uns sons que pareciam tiros de revólver e emitindo gritos orientando onde estava o elemento.
O quarteirão no qual o meliante estava se aventurando tinha muitas casas, mas era contornado por edifícios em quase toda sua volta.
Não havia saída!
Os moradores nas janelas gritando, ele pulando dos telhados para os muros, dos muros para os quintais, dos quintais para os muros e o quarteirão todo cercado pelos jovens, os reis da rua, esperando ansiosamente sua saída.
Ia ser uma festa (chamávamos assim as brigas de rua) das boas.
O descuidado estava louco para que o Rapa chegasse logo, livrando-o da turba ensandecida.
Quando chegou a rádio patrulha ele entrou como um foguete na viatura com os olhos arregalados de medo.
Havia mais solidariedade e caráter nos cidadãos.
Desnecessário um estatuto de idosos.
Os mais velhos eram respeitados naturalmente e, na maioria das vezes, temidos por sua energia moral e pelo acúmulo de experiências. Nos transportes urbanos não ficavam de pé. Nem eles nem as mulheres grávidas ou não. Era natural e bonito ceder lugares, respeitosamente, a essas pessoas.
Isso nos anos sessenta - não se passou tanto tempo - pelo menos eu penso assim.
Não tínhamos medo da polícia e sim dos nossos pais.
- É gente, o Pelé sumiu de vez!
Observação e preocupação própria de uma grande família.
- Ninguém saber onde ele mora é um absurdo! -comentário geral.
Todos com o coração apertado de tantas especulações e alimentando sentimento de culpa.
Chegaram a dizer que fora atropelado por um ônibus.
Outros afirmavam de maneira convicta que um empresário de cinema do Rio de Janeiro reconheceu seu talento levando-o embora.
Esse caso nunca foi muito bem explicado.
Mas Pelé não era só um amigo; era irmão.
Entramos em contato com a polícia, o Pronto Socorro, a Santa Casa e nada...
Quando nunca mais se vê um amigo, ele não envelhece na memória.
Até hoje, quase quarenta anos depois, nas poucas vezes que passo por ali, vejo com os olhos do coração um menino alegre batucando seu instrumento de trabalho.

(...)

Fred, 09/01/2011

sábado, 1 de janeiro de 2011

Rabo de Peixe


(Fragmento do livro Álcool Ajuda ou Autoajuda - Fred Explica - 1999)
Nota: Os textos postados neste blog não obedecem a nenhuma ordem cronológica.
ZZFred
(...)


Anos sessenta 







"Carrões rabo de peixe causavam frisson  nas  belas garotas que enfeitavam as ruas"






- Ô Gordo, vamos dar uma volta?
- Qualé Serginho, isso deve ser roubado!
- Não, camarada; esse carro é do meu pai!
O Gordo sabia do mau hábito do amigo que, apesar de bem apessoado e filho de um rico empresário de Belo Horizonte, gostava de desfilar pela capital mineira dirigindo veículo que lhe atraísse não importando quem fosse o proprietário.
Péssima conduta!
Todavia, pelos argumentos do companheiro que não era como ele que ganhava o pão de cada dia ajudando seu pai na lanchonete, o Gordo houve por bem acreditar.
Saltou sobre a porta lateral do impecável conversível branco com volante vermelho e tomou seu lugar na poltrona de couro ao lado do motorista.
Carrões rabo de peixe causavam frisson nas belas garotas que enfeitavam as ruas.
Como sempre, a cidade estava preguiçosa e vazia em tarde quente de domingo.
O Gordo era um rapaz de musculatura compactada numa estatura mediana. Descendência italiana, olhos azuis, cabelos loiros e lisos que ficavam caindo aos olhos criando o cacoete de jogá-los a todo o momento para trás com um movimento repetitivo de cabeça. Destacava-se por ser, também, um bom mecânico de automóveis e de motocicletas.
Além de forte e bom de briga, a habilidade em lidar com máquinas era seu passaporte para infiltrar no nível social acima do dele.
Recostado à porta, contando suas proezas na recuperação dos veículos, observava o amigo guiando tranqüilamente, direção à lagoa da Pampulha, com apenas uma das mãos ao volante.
Belo Horizonte era calma.
Respirava-se e suspirava-se profundamente.
A Pampulha, um dos paraísos.
Lambretas, motos e carros importados.
Lugar de ricos e simpatizantes.
James Dean e Elvis Presley faziam a cabeça da geração anterior a minha.
No caminho de volta ao centro da cidade, Serginho revelou com um sorriso:
- Peguei esse carro lá perto da turma, na rua Guajajaras.
O Gordo entrou em pânico.
- Pare o carro, não quero me envolver nessa maluquice!
Com ar debochado, respondeu indo em direção ao local do furto numa velocidade que não permitiu ao pobre condenado saltar do veículo:
- Fique calmo, tenho tudo sob controle!
Gotas de um frio suor começaram a descer pelo rosto do passageiro quando avistou duas viaturas policiais à porta da casa de onde fora executado o furto.
Logo uma senhora de meia idade identificou, subindo pela rua, o objeto alvo do seu desespero.
- Olha lá, olha lá. É o meu carro!
Os policiais, armas em punho, detiveram os supostos ladrões enquanto a proprietária se aproximava para verificar possíveis danos, entretanto, a jóia estava intacta.
A essa altura, mãos levantadas, Serginho explicava inocentemente à inconsolável criatura:
- Minha senhora; estávamos passando pela Pampulha quando um sujeito moreno nos pediu que trouxéssemos o carro para este endereço e que, ainda, receberíamos uma recompensa do proprietário.
- Eu não preciso disso, continuou. Sou filho de fulano de tal. Meu pai tem vários carros à minha disposição!
- Meu rapaz; exclamou aliviada. O sujeito era um ladrão, vocês correram um grande risco!
- Faço questão que aceitem uma pequena gratificação, insistiu.
Pela evidenciada inocência, logo foram liberados.
Dobrando a esquina, de volta e contando o dinheiro, ficaram os dois se debruçando em gargalhadas, fruto da aventura irresponsável.
(...)
Fred, 01/01/2011

Um Caso do Outro Mundo


(Fragmento do livro Álcool Ajuda ou Autoajuda - Fred Explica - 1999)
Nota: Os textos postados neste blog não obedecem a nenhuma ordem cronológica.
ZZFred
(...)


"Eu vou entrar em concentração, respirar fundo, invocar a entidade mentalmente e quando me ver curvado, mãos para trás, é sinal de que ela está presente"


Anos sessenta 




Jorge, outra figura de nossas relações, tinha um perfil sinistro. 

Amigo de poucas horas. 

Raramente participava das rotinas da turma.
Dezessete anos, estatura mediana, impressionava pela quantidade de pelos que o cobria. Barba prematuramente espessa. Sobrancelhas, braços e pernas com longos fios de cabelos extremamente pretos.
Segundo comentários, sua família era praticante de rituais macabros de magia negra. Ele dizia que era Quimbanda, uma religião de africanos que cultuavam os segredos e as energias da natureza. 
Os céticos como eu, na época, não acreditavam em narrativas tão cheias de detalhes sombrios. 
Mas, por via das dúvidas, nunca nos aventurávamos em seu apartamento. 
Contava-se que por lá havia uma cabeça de bode na geladeira e que, quando a retirassem, uma pessoa no hospital morreria, ficando livre do sofrimento que lhe causara um feitiço encomendado.
É a velha e batida história: eu não acredito nas bruxas, mas, que elas existem, existem!
Numa tarde de verão Jorge me procurou em casa.
- Fred, preciso de um grande favor. Amanhã bem cedo tenho que fazer os exames médicos para ser engajado no exército. Vou incorporar uma entidade, o Sete Facadas, e queria que pedisse a ele para providenciar minha dispensa. 
Fiquei meio assustado diante da situação. 
Apesar de um tanto curioso, eu era de formação católica. Entretanto, para não fugir ao pedido e talvez, até, em função do machismo, resolvi atender solicitando, todavia, instruções de como proceder diante do espírito. 
- Você faz o seguinte, explicou. Eu vou entrar em concentração, respirar fundo, invocar a entidade mentalmente e quando me ver curvado, mãos para trás, é sinal de que ela está presente. Diga que, saindo daqui eu, Jorge, vou até o Mercado Central – ele saberá pra que. Faça o pedido em meu nome e determine que ele se retire. Ocorrendo qualquer resistência, coloque um crucifixo em sua direção. Ele partirá imediatamente. 
- OK, manda brasa, falei com ar debochado.
Confesso, trinta e dois anos depois, que os fatos impressionaram.
Jorge se curvou como um velho. 
Descalço, começou a arranhar com as unhas dos pés os tacos do meu quarto, deixando sulcos nos locais. 
Dirigiu-me um noite!(queria dizer boa noite) com uma voz cavernosa, e iniciamos o diálogo.
- Boa tarde, você quer dizer, corrigi em seguida.
- É; pode ser; onde estou é sempre escuro. Me arruma um pau branco aí – pediu, apontando para o maço de cigarros Minister. 
Achei esquisito, Jorge habitualmente não fumava, todavia, como ali deveria estar outra pessoa, atendi prontamente. 
Como se estivesse em abstinência consumiu avidamente o primeiro até derreter o filtro. 
Em seguida pediu outro já, então, mais tranqüilo.
- O quê que o meu cavalo tá quereno? – falou sua voz rouca e imperativa. 
Passei rapidamente a missão que lhe fora atribuída, conforme o combinado.
- Aquele filho da mãe só quer moleza, ele tem é que sofrer. Chama aquela .... lá dentro, resmungou.
Como só estavam em casa eu e minha mãe, deixei de lado a cerimônia e parti pra cima do ofensor pedindo respeito, dizendo que se retirasse e ameaçando buscar o crucifixo.
- Eu te derrubo, tentou intimidar.
- E eu passo por cima de você, respondi vermelho de raiva.
Bastou minha indignação e a decisão de enfrentar a fera para que começasse numa respiração profunda e o Jorge logo voltasse querendo saber dos acontecimentos.
Fiz um breve relato, ainda querendo briga. 
Jorge tratou de se desculpar pelo outro, com a educação que lhe era peculiar, explicando, em resumo, os detalhes daquelas manifestações. 
Com a cabeça girando em face de uma situação incomum e assustadora aceitei provisoriamente seus argumentos pedindo que nunca mais trouxesse aquele tipo de coisa para dentro da minha casa.
Quando relatei o episódio numa roda de amigos, logo vieram as gozações: o Jorge estuda teatro, ele estava curtindo com você – conta essa pra outro, deixa de ser bobo cara – ele fez isso pra te assustar e você caiu na dele.
Passado algum tempo fui procurado pela mesma turma narrando o seguinte: Fred, você estava certo, cara! Ficamos curiosos e fizemos uma reunião no apartamento do Dom. Umas dez pessoas no quarto e, quando baixou o santo, não ficou alma viva. O Marreco se enfiou debaixo da cama. Como não dava para passar pela porta o pessoal saiu pela janela que dava para a varanda, da varanda para a sala e da sala para fora do apartamento em desabada correria. Não fosse a intervenção do senhor Geraldo, o pai do Dom, que era espírita Kardecista, a entidade ainda estaria por lá e o Marreco, coitado, sem ter por onde sair. 
Um verdadeiro alívio ficar sem a pecha de idiota. 
Tirei o maior sarro do pessoal. 
- Eu enfrentei o problema sem ajuda. Vocês todos não agüentaram um minuto, bando de maricas!
Na realidade também tive momentos de pavor, mas, fui obrigado a resolver sozinho. 
Não tinha outro jeito.


(...)

Fred, 01/01/2011

Fora dos trilhos



Juvenal tirou a noite para afogar as saudades num barzinho de Copacabana. Estava no Rio implantando a filial de uma empresa de grande porte.
Longe da dona Candinha e da família há mais de quarenta dias, não aguentava o tédio da solidão. A esposa não pôde acompanhá-lo devido às suas rotinas em Belo Horizonte cuidando da casa e dos filhos. Ali estava o personagem no balcão acompanhado, apenas, do copo de Whisky e das pedras de gelo que eram mexidas com o dedo indicador num ritual monótono.  Tinha um bom salário que lhe permitia roupas de grife para disfarçar uma aparência em desacordo com os dotes de beleza vigentes. Na verdade ele era feio mesmo. No que a natureza o privara,  o beneficiara em inteligência e simpatia. Ótima companhia para longos papos.   Não era homem de beber sozinho.  Garçom atencioso, tira-gostos e músicas de primeira qualidade num ambiente de pouca luz começaram a atiçar seus instintos masculinos.  Nesse clima entrou Helena e seus atributos femininos bem cuidados, deixando perceber que estava procurando ou esperando alguém. 
Como não quer nada, querendo, aproximou-se e pediu um suco de laranja e logo estava de papo com o Juvenal. Demorou pouco e já rumavam pro apartamento da moça para continuar a conversa.
Juvenal já tinha virado Ju e Helena, Lena.
No aconchego do apartamento e no rala e rola que se seguiu, eis que entra um marmanjão atravessando a sala deixando no ar um boa noite gutural para os pombinhos enamorados.
Lena nem se abalou, parecia uma circunstância comum.
Juvenal quase teve um infarto.
Quando lhe voltou a fala quis saber quem era o sujeito.
- Esquenta não, é o meu marido Joca.  Ele não liga pressas coisas.
- Ele não liga, mas eu ligo, ora!
Um turbilhão de culpas e medos começou a atormentar a mente do pobre homem.
Rapidinho deixou o lugar, rumando para o hotel aliviado por não ter levado, na melhor das hipóteses, uma violenta surra naquela situação.  Ainda mais que os crimes passionais ainda eram atenuantes nos anos sessenta.
No dia seguinte, entrando em seu escritório na zona sul para trabalhar, assusta-se com a presença do maridão sentado, confortavelmente, numa poltrona de couro da antessala.
- O senhor Joaquim está esperando com notícias da dona Candinha e de Belo Horizonte, disse a eficiente secretária ao executivo amarelado e boquiaberto.
Naquela hora soube que Joca era Joaquim e que caíra num golpe dos infernos.
Fazer o que?!
Só restava tocar a situação e ver onde iria parar.
Já na sala, acomodado à sua frente, começou a cantilena.
-Pois é doutor Juvenal, o meu casamento não anda nada bem.  Grana curta sabe como é, não?!  Pensando bem, continuou, sabe não!
O senhor tem uma casa confortável na zona sul da capital de Minas, carro importado, é sócio do melhor clube de lá, filhos estudando no colégio mais caro e, casado, ainda, com a dona Candinha, um exemplo de mulher. Dedicada à família e tudo mais.  Pena que ela é meio brava, né doutor?!  Eu escutei, ontem, a sua conversa desesperada com a Lena depois que entrei em casa.  Está tudo gravado. Faço isso para me documentar e provar, se preciso, as aprontações daquela megera.  Estou aqui hoje para ver se o senhor pode me ajudar. Tô na maior pitimba. Não tenho dinheiro para nada.
Ali começou o calvário do Juvenal.
O moço virou freguês.  De tantas idas e vindas tinha se tornado, até, amigo da sua secretária.
Um dia, vendo que a extorsão não teria fim, a vítima explodiu.
- Quer saber de uma coisa, seu safado, pode mandar a tal fita pra Candinha pois a partir de hoje não sai mais nenhum tostão do meu bolso.
- Deixa pra lá doutor Ju, já consegui um bom dinheiro.  Outra coisa, procure um médico.  O senhor anda muito nervoso.  Cuidado com o coração, hein?!

Fred, dezembro de 2010.