sexta-feira, 29 de julho de 2011

O Lenhador - Catullo da Paixão Cearense


Extraído do livro "Meu Sertão" de Catullo da Paixão Cearense
"...tudo o que se lê em "Meu Sertão", é pura fantasia  e, se não fosse fantasia, não era obra de arte. A alma de Catullo é que nos canta ali e é por isso que o admiramos a ele.  As imagens são invenção dele, mas sabemos que os caipiras são mui capazes de as ter assim belíssimas,  por vezes maravilhosas. Ainda há pouco ouvi das mais originais da boca de um carreiro analfabeto, o célebre Sabino Grajaú, de Alagoas. 
"Meu Sertão" não é o sertanejo fotografado; é o sertão no que tem de poético, simples e selvagem, compreendido, sentido, evocado pela alma de seu filho, que se educou no Rio. É uma saudade posta em verso; saudade que se deleita em ir pintando as cenas mortas, refazendo gentes, vistas, costumes interessantes, usanças particulares, pondo em tudo certa nostalgia bem real, muito emotiva. 
É a missão do poeta.  O poeta não decalca, não trasfolha, não cobre riscos; debuxa apenas os contornos, calca os tragos de reforço, faz sombras, combina cores, que sejam transuntos de sua alma, pedaços de suas emoções."
José Oiticica

O Lenhador

Foto em cdandlp.com
Um lenhadô derribava
as árve, sem percisão,
e sempe a vó li dizia:
meu fio: tem dó das árve,
que as árve tem coração.


O lenhadô, num muchocho,
e rindo, cumo um sarvage,
dizia que os seus conseio
não passava de bobage.


Às vez, meu branco, o marvado,
acordano munto cedo,
pegava nu seu machado,
e levava o dia intero,
iscangaiano o arvoredo.
E a vó, supricano im vão,
sempe, sempe li dizia:
meu fio: tem dó das árve,
que as árve tem coração.
Numa minhã, o mardito,
inda mais bruto que os bruto,
sem fazê caso dos grito
da sua vó, que já tinha
mais de noventa janêro,
botô nu chão um ingazêro,
carregadinho de fruto.
Doutra feita o arrenegado
inda fez munto pió:
disgaiô a laranjêra
da pobrezinha da vó,
uma véia laranjêra,
donde ela tirô as frô
prá levá no seu vistido,
quando, virge, si casô,
cum o véio, que tanto amou 
cum o difunto, o falicido.
E a vó, supricano im vão,
sêmpe, sêmpe li dizia:
"meu fio: tem dó das árve,
que as árve tem coração!"
Do lado do capinzá,
adonde pastava o gado,
tava um grande e véio ipê,
que o avô tinha prantado.
Despois de levá na roça
c'uma inxada a iscavacá,
debaxo d'aquela sombra,
nas hora quente do dia,
vinha o véio discansá.
Se era noite de luá,
ali, num banco de pedra,
cuma viola cunversano,
o véio, já caducano,
rasgava o peito a cantá.
Apois, meu branco, o tinhoso,
o bruto, o mau, o tirano,
a fera disnaturada,
um dia jogô no chão
aquela árve sagrada,
que tinha mais de cem ano.
Mas porém, quando o tinhoso
isgaiava o grande ipê,
viu uns burbuio de sangue
do tronco véio iscorrê!
Sacudiu fora o machado,
e deu de perna a valê!
E foi correno...correno!
Cada tronco que ia vendo
das árve, que ele torô,
era um braço alevantado
dum home, meio interrado,
a gritá: Vai-te, marvado!
Assassino! Matadô!
Foi Deus quem te castigou!
E foi correno! correno!
Cada vez curria mais!
Mas porém, quando já longe,
uma vez oiô prá-traz,
vendo o ipê alevantado,
cumo um home insanguentado,
cum os braço todo torado...
cada vez curria mais!
Na barranca do caminho,
abandonado, um ranchinho,
entre os mato entonce viu!
Que vê si apara e discansa,
e o ranchinho prú vingança,
im riba d'ele caiu!
E foi correno, e gritano!
e as árve, que ia topano,
e que má pudia vê,
cumo se fosse arrancada
cum toda a raiz da terra,
numa grande adisparada
ia atrás dele a corrê!
Na boca da incruziada,
veno uma gruta fechada
de verde capuangá,
o home introu pulos mato,
que logo que viu o ingrato,
de mato manso e macio,
ficô sendo um ispinhá!
E foi outra vez correno,
cansado, pulos caminho!
Toda a pranta que incontrava,
o capim que ele pisava,
tava crivado de ispinho...
Curria e não aparava!
Ia correno sem tino,
cumo o marvado, o assassino,
que um inocente matô!
Mas porém, na sua frente,
o que ele viu, de repente,
que, de repente, impacô?
Era um rio que passava,
ali, naquele lugá!
O rio tinha uma ponte,
Que nóis chamemo pinguela,
O home foi travessá!
Pôs o pé.. Ia passano.
E a ponte rangeu quebrano,
e toca o bicho a nadá!
O bruto tava afogano,
mas porém, sêmpe gritano:
socorro, meu Deus, socorro
socorro, que eu vô morrê!
Eu juro a Deus, supricano,
nunca mais na minha vida
uma só árve ofendê!
Entonce, um verde ingazêro
que tava im riba das água,
isticou um braço verde,
dando ao home a sarvação!
O home garrô no gaio,
no gaio cum os dente aferra,
foi assubino, assubino...
e quando firmô im terra,
chorava cumo um jobão!
Bejano o gaio e chorano,
dizia: Munto obrigado!
Deus te faça abençoado,
todo ano tê verdô! (ter verdor)
Vô rebentá meu machado!
Quero isquecê meu passado!
Não serei mais lenhadô!
Depois desta jura santa,
pra tê de todas as pranta
a graça, o perdão intêro
dos crime de hôme ruím,
foi se fazê jardinêro,
e não fazia outra coisa
sinão tratá do jardim.
A vó, que já carregava
mais de noventa janêro,
dizia que neste mundo
nunca viu um jardinêro
que fosse tão bom assim!
Drumia todas as noite,
dêxano a jinela aberta,
pra iscutá todo o rumô,
e às vez, inté artas hora,
ficava, ali, na jinela,
uvindo o sonho das frô!
De minhã, de minhã cedo,
lá ia sabê das rosa,
dos cravo, das sempreviva,
das maguinólia cherosa,
se tinha durmido bem!
Tinha cuidado cum as rosa
que munta vó carinhosa
cum os seus netinho não tem!
Dizia a uma frô: Bom dia!
Como tá hoje vremêia!
Dizia a outra: Coitada!
Perdeu seu mé! Foi robada!
Já sei quem foi! Foi a abêia!
Dispois, cum pena das rosa,
que parece que chorava,
batia leve no gaio,
e as rosa disavexava
daqueles pingo de orvaio!
Ia panhano do chão
as frô que no chão caia!
Dispois, cum as costa da mão,
alimpano os pingo dágua,
que vinha do coração,
batia im riba do peito,
cumo quem faz cunfissão.
Quando no sino da ingreja
tocava as Ave Maria,
nos cantêro, ajueiado,
pidia a Deus pulas arma
das frô, que naquele dia
no jardim tinha interrado!
E agora, quando passava
junto das árve, cantano,
cheio dágua carregano
o seu véio regadô,
as árve, filiz, contente,
que o lenhadô perduava,
no jardinero atirava
as suas parma de frô!



Catullo da Paixão Cearense

(Poeta brasileiro )

1863 - 1946

Nota: 
Catullo era o contestador da sua época.  Usava a linguagem dos sertanejos em suas grafias como forma de integrar o leitor ao ambiente da inspiração e, também, para fustigar os intelectuais do seu tempo. 
Como todo gênio, era criticado por uns poucos e admirado pela maioria. 
As árvores do nosso país sabem falar.  
Querem ouvi-las?! 
Entendam a alma de Catullo.

Fred, 29/07/2011

quarta-feira, 27 de julho de 2011

Novos ares


(Fragmento do livro Álcool Ajuda ou Autoajuda - Fred Explica - 1999)
Nota: Os textos postados neste blog não obedecem a nenhuma ordem cronológica.

(...)
pontocruzpontocommisses.blogspot.co
Contagem, na sua região residencial, tinha naquele tempo, além de cavalos e vacas perambulando pelas ruas, um povo muito hospitaleiro. Apesar de se localizar há menos de vinte quilômetros do centro de Belo Horizonte, mantinha hábitos próprios, fechados nas tradições das antigas famílias que ali criaram as suas raízes. 
Era tudo o que eu buscava. O mundo idealizado da infância distante que ficara no curral dos sonhos inatingíveis e na rotina escravocrata do capitalismo.
Poderia alugar ou vender meu apartamento de Beagá e comprar uma casa.
Ficaria mais próximo do trabalho e com uma qualidade de vida muito melhor.
Teria um cachorro, um quintal e vizinhos sorridentes que dariam bom dia, boa tarde e boa noite.
"Eu quero uma casa no campo..." (Zé Rodrix e Tavito)
Com essa expectativa e, por vinte e cinco anos, fincamos nossas estacas.
Fiz muitos amigos pelo bairro e pelos bares.
Após o trabalho, as cervejas no bar do Alemão ou do Gigi eram sagradas.
Gostava de ouvir as histórias do lugar que tem esse nome porque servia para fazer a contagem de gado que seguia até o arraial do Curral Del Rei, antigo nome de Belo Horizonte.
Os casos pitorescos mantinham, numa aparente ingenuidade, a  malícia das cidades do interior de Minas Gerais.
O elo com Beagá passou a se resumir na amizade com o meu compadre Roberto e alguns parentes.
Roberto casou-se com minha prima Neuza dando-nos sua primeira filha para batizar:  a querida e distante Laiza.
Hoje estão morando em Brasília.
Roberto, excelente profissional no ramo das representações comerciais, é médium espírita e recebe duas entidades. Um preto velho e um médico alemão.
Quando ele morava em BH cheguei a participar de algumas reuniões a seu convite ou por iniciativa própria.
As sessões  permitiam uma agradável sensação de paz.
No entanto, ele nunca tentou me influenciar na direção dessa admirável doutrina que pratica a máxima cristã do amor e da ajuda ao próximo.
(...)
Fred, 27/07/2011

quinta-feira, 21 de julho de 2011

Temas para reflexão


"A neve e a tempestade matam as flores, mas nada podem contra as sementes."
(Khalil Gibran)

"Se não houver frutos, valeu a beleza das flores; se não houver flores, valeu a sombra das folhas; se não houver folhas, valeu a intenção da semente.
(Henfil)"

segunda-feira, 18 de julho de 2011

Outros causos do hospital


(Fragmento do livro Álcool Ajuda ou Autoajuda - Fred Explica - 1999)
Nota: Os textos postados neste blog não obedecem a nenhuma ordem cronológica.


(...)
Em: Sonho-Sombrio.blogspot.com
Retornando ao ambiente do hospital, as brincadeiras continuavam e, em outra oportunidade instigaram um dos internos - um dos mais desligados da realidade -  procurar voluntários para uma excursão a Ouro Preto.
Era necessária a anotação do nome em um papel conseguido na administração, obviamente com outro pretexto.
Precisava-se de, no mínimo, quarenta assinaturas e, em seu delírio, o ônibus já estaria estacionado à porta do hospital.
Pronto, virou idéia fixa.
Todos os dias éramos abordados pelo elemento que insistia no pedido querendo que assinássemos o tal papel.
Alguns davam um rabisco qualquer, se livrando do inconveniente.
Eu me negava assinar dizendo que precisava saber se o ônibus possuía sanitário para as nossas necessidades.
Como não sabia a informação, retirava-se para procurar.
Isso durou vários dias.
O pobre indivíduo assumiu a fantasia da liberdade e nós alimentávamos o seu pequeno sonho.
(...)
Tocão se destacava pelo bom humor e seu quarto competia com o nosso em freqüência.
Ali jogávamos às escondidas, ingênuas partidas de buraco, ouvíamos piadas e ficávamos surpresos com o volume de informações sobre o que ocorria nos outros pavilhões.
- Fulano de tal do segundo andar está com AIDS!
O tal indivíduo pouco aparecia em nosso meio, além de maluco-depressivo, era arredio. O preconceito, de que tanto se fala, estava nele mesmo.
Fazia parte dos internos em apartamentos.
Ali as diárias eram mais salgadas, notando-se que o comportamento dos inquilinos era de grande melancolia.
Fez acreditar que a solidão prejudica o restabelecimento.
Um dia cruzei com um deles que carregava, no estilo Juca Chaves, um violão sobre os ombros. Tinha um aspecto estranho. Olhos esbugalhados com se estivesse sob efeito de anfetaminas. Sobre as veias dos braços vários hematomas. Era agitado e falava pelos cotovelos. A experiência que a vida me deu nesses casos fez com que o abordasse:
- Cara, que bom, você toca violão? – perguntei, querendo me aproximar.
- Não, respondeu de imediato.
- Então, obviamente, indaguei: de quem é o instrumento?
- É cumpade, meus velhos me deram para distrair por aqui. - E você, toca alguma coisa?
Tomei de suas mãos e observei que estava razoavelmente afinado. Consegui me lembrar de uma música do Chico, creio que era Quem Te Viu Quem Te Vê e toquei arrastando nos acordes (a cabeça estava devagar). Enquanto executava, o proprietário andava de um lado pro outro e, quando terminei, devolvi e recebi de volta um:
- Cara, você conhece esse negócio!
Que nada, eu estava convicto que o desempenho ficara abaixo da crítica.
Mais um que sumiu.
Nunca mais apareceu no pátio, nos corredores ou nas reuniões espíritas.
Mistério. 
Ele deveria ser morador da zona sul de Belo Horizonte, fechado em preconceitos sociais e o pior, assustado pelo mundo.
Mais tarde fiquei sabendo que o local do meu internamento fora sugerido por um médico, talvez em função de evitar a perda de um convívio comunitário mais intenso.
As pessoas que deixam os vícios com a ajuda de tratamentos psiquiátricos tendem a se isolar durante e, depois, por um longo período.
Acredito que isto se dá em função de uma espécie de machismo enraizado em nossos costumes.
- Ele é fraco, precisou de se internar para largar a bebedeira! - falariam com certeza, referindo-se a mim.
Numa sociedade que aprendeu a dicotomia do vencedor e do perdedor, é bem possível que isto aconteça na mente de algumas pessoas, principalmente daquelas que continuam usando as bengalas dos vícios.
É paradoxal e seria motivo para longas teorias. 
No entanto esse não é o objetivo principal dessa narrativa.
(...)
Uma vez, abordado por um dos internos, começamos um assunto recorrente (um, sempre querendo saber do outro os motivos da internação).
Disse-me que era vítima de depressão profunda causada pela infidelidade de sua esposa com um parente.
Pediu sigilo absoluto em função do constrangimento que certamente seria exposto.
Usei argumentos para confortá-lo, senti pena, e mantive a confidência em segredo.
Guardávamos informações pessoais e esmerávamos nos conselhos. 
Era a característica do nosso grupo.
Entretanto, logo descobrimos que o tema já era do conhecimento geral.
Assim sendo logo recebeu o apelido de boi, numa alusão direta aos seus declarados chifres.
Era saudado por mugidos comandados pelo infame do Tocão.
A princípio desconfiávamos que a narrativa era fruto da sua imaginação não fossem, mais tarde, confirmadas por parentes.
Todavia, já habituado com as brincadeiras não se abateu e, ao contrário, passou a integrar a orquestra bovina.
Outro que melhorou da água pro vinho.
Deixou de ter pena de si mesmo e de ficar como se estivesse procurando alguma coisa pelo chão.
Ganhou uma postura melhor e já caminhava com o nariz apontado para frente.

 (...)
Robério tinha seus momentos de depressão.
Ficava sentado no chão no final de um corredor sem saída, encostado em uma parede e ladeado por outras duas com a cabeça enfiada entre as pernas como de estivesse chorando.
Numa dessas criei coragem e interpelei:
- O que que há amigo! Posso ajudar?
No primeiro contato respondeu negativamente apenas com um menear de cabeça.
Pensei me afastar, deixando-o com seus problemas.
Era uma pessoa singular, participava de saudáveis e engraçadas armações, sempre solidário e às vezes daquele jeito; precisava de ajuda e decidi intervir.
Nunca esqueci e jamais esquecerei do socorro que me prestou em meu primeiro dia no refeitório.
Como investigador de nobre causa, comecei a abordar pessoas ligadas a ele há mais tempo no sentido de obter informações de suas atividades.
O resultado foi triste.
Robério era um policial. Participara de várias blitz em favelas ou nas ruas da metrópole. Difícil não imaginar tiroteios e mortes nessas investidas, sem contar o meio, às vezes contaminado, com o qual era obrigado a conviver. Como o seu perfil psicológico não indicava vocação para a atividade, eram absolutamente normais os períodos de intenso abatimento.
Não havia nada a fazer.
O monstro que vinha atormenta-lo tinha a força de um dragão.
Mesmo assim ficou sabendo da minha intenção e respondia com um sorriso quando o encontrava naquelas fossas profundas.

(...)
As brincadeiras eram verdadeiros bálsamos e, numa ocasião, furei o fundo de um copo descartável com a ponta do cigarro, de forma a utilizá-lo no bebedouro com a ponta do dedo tapando o buraco.
Uma grande fila se formava em virtude do forte calor de janeiro.
Aguardei o momento adequado.
Interpus à frente de um companheiro, daqueles que tinham mania de tudo pedir.
Tapei o buraco, enchi o copo até a borda e depois degustei o precioso líquido com expressão aliviada.
Como era natural, o recipiente logo foi pedido emprestado pelo amigo que se destacava por uma completa ausência de raciocínio lógico.
Saí e fiquei ali perto observando as conseqüências.
A água saia por baixo, o copo não se enchia e a fila dos impacientes crescia em tamanho e irritação.
Como a vítima não deu pela coisa apressei-me para explicar esportivamente o fato.
Mostrei o buraco que deveria ser tapado e evitei instigar qualquer tipo de gozação o que, infelizmente, era habitual e, às vezes, passava dos limites.
O evento não deixou de trazer algum benefício ao personagem que a partir de então passou a ficar mais atento aos acontecimentos.

(...)
Pode parecer que a narrativa esteja demonstrando uma espécie de aventura divertida e que a coisa não era tão difícil como na verdade era.
A aflição dos colegas quanto às altas de internação era patética.
Periodicamente, tínhamos consultas médicas que eram ansiosamente esperadas.
- Como está a minha situação doutor, quando vou ter alta?
Obtínhamos, sempre, respostas evasivas, sem palavras que nos pudessem tranqüilizar.
Acreditava num certo interesse dos médicos em nos manter internados, haja vista que as consultas se resumiam numa simples pergunta:
- Tudo bem com você?
Essa forma lacônica deixava passar indiferença e isso revoltava.
- Deixa pra lá, pensei comigo.
Ora, os médicos estavam realmente fazendo uma consulta.
Eles perguntavam alguma coisa...
Queríamos conversar por um tempo maior. Pedíamos atenção. Perguntas e assuntos não faltavam.
Os doutores da cabeça humana mais pareciam gerente de banco atendendo correntista pobre.
No entanto, teria eu gabarito para avaliar profissionais que dedicaram boa parte de suas vidas a estudos acadêmicos de uma área que não domino?
Como estou relatando as emoções da época, era assim mesmo a nossa aflição.
Por isso deixei de atender algumas convocações.
Ouvir "tudo bem?". Pra quê?
Não fazia sentido!
O pessoal que estava mais acostumado com os procedimentos do local se dava melhor.
Alberto, por exemplo, quando foi internado, negou se levantar da cama enquanto não lhe administrassem o soro fisiológico, até que o seu pedido foi acatado.
Fiquei sabendo, no dia seguinte, que eram válidas suas exigências.
Quando chegou, pálido e com aparência mórbida, todos imaginavam uma situação muito séria.
Os colegas comentavam:
- Esse não vai longe, coitado!
Todavia, no dia seguinte à aplicação do soro, lá estava ele jogando tênis de mesa, com os reflexos apurados, vencendo as partidas e eu, sob efeito dos tranqüilizantes servindo às brincadeiras dos que esperavam a vez de entrar no jogo.
Logo eu que sempre me dava bem nesse esporte de salão.
Mas, era bola prum lado e jogador pro outro...
O conhecimento é vital em tudo nesta vida, no entanto eu não queria me doutorar no campo das internações repetidas. 

Alberto tinha muitas à minha frente.
(...)
Prevenido contra os filadores do pavilhão, argumentei que somente cederia cigarros aos internos que me apresentassem atestado médico autorizando-os a fumar.
Tal exigência tornou-se corriqueira entre os fumantes que compravam os próprios cigarros e, logo, o problema foi resolvido.
Os atestados, obviamente, 
foram negados.
Os médicos não devem estar gostando nada disso, pensei.
Certa feita um deles me perguntou, com rara simpatia:
- Isso é coisa sua, não é Fred?
Confirmei com um discreto sorriso.

(...)
Estávamos organizados em grupos como acontece em qualquer sociedade e o appartaid cultural formava-se naturalmente.
Não que fossemos afeitos a qualquer tipo de discriminação.
Pelo contrário, quantas vezes tentamos trocar experiências ou informações com os companheiros, mas, por ali imperava uma espécie de culto personalista onde alguns se imaginavam os senhores das verdades ou conhecedores de intrincadas questões filosóficas.
O alcoolismo desenvolve uma estranha auto-suficiência.
Como qualquer droga, as funções do cérebro ficam superestimuladas, criando-se teses definitivas numa lógica de difícil contestação. Como dizia Einstein: aquele que tenta se pôr como juiz no campo da verdade e do conhecimento é afundado pela risada dos deuses.
Evitava discussões daquela ordem. Estava enjoado de conversas que serviam, somente, para justificar comportamentos de completo desajuste social.
Uma peça teatral que me enfastiava e, como se de um novo palco as cortinas começassem abrir, principiava a descoberta de atrações bem mais importantes.

(...)
Fred, 18/07/2011

quinta-feira, 14 de julho de 2011

Toninho Geraes

Me Leva (Toninho Geraes) - ZZFred (Ensaio)

Mulheres (Toninho Geraes)ZZFred

Uma Prova de Amor (Nelson Rufino e Toninho Geraes) - ZZFred


Sobre Toninho Geraes:
* 1962 Belo Horizonte, MG
Em 1979 saiu de casa e foi para o Rio de Janeiro.
Passou por várias dificuldades ao chegar ao Rio de Janeiro dormindo na rua e em casa abandonada em Ipanema.
No Rio de Janeiro conheceu o compositor do Império Serrano Beto Sem Braço, que o levou para participar dos "pagodes da tamarineira", como era chamada a roda de samba que alguns frequentadores do futebol faziam no bloco carnavalesco Cacique de Ramos, no subúrbio de Ramos. Freqüentando esta roda de samba conheceu Zeca Pagodinho, Almir Guinéto, Jorge Aragão, Bira Presidente, Deni de Lima, Mauro Diniz, Jovelina Pérola Negra, Arlindo Cruz e outros que também participaram do início do "Pagode" no Rio de Janeiro.
Em 1986 com a composição "O rato roeu", de sua autoria, participou da coletânea "Na aba do pagode". Por essa época, Agepê interpretou de sua autoria "Me leva", que fez relativo sucesso.
No ano de 1995 sua composição "Mulheres", foi incluída no CD "Tá delícia, tá gostoso", de Martinho da Vila. Este CD atingiu a marca de mais de um milhão e meio de cópias vendidas graças ao sucesso desta música.
Em 1999, no disco "3.0 Turbinado ao Vivo", Martinho da Vila incluiu "Coração de louça" (Toninho Gerais, Paulinho Rezende e Martinho da Vila). Em 2001 lançou o CD "Samba de botequim", no qual foram incluídas de sua autoria "Arca de partideiro", "Terça parte" (c/ Alceu Maia), "Dona de casa" (c/ Canário) e ainda "Mel e pimenta", de autoria de Noca da Portela e Toninho Nascimento. Neste disco, também regravou o seu principal sucesso "Mulheres". O CD foi lançado no Espaço Cultural Constituição, na Rua da Constituição, centro do Rio de Janeiro. Neste show contou com as participações especiais de Barberinho do Jacarezinho, Luiz Grande e Marcos Diniz.
No ano de 2002 lançou o CD "Samba de botequim" no Bar Mistura Fina, em Ipanema, no Rio de Janeiro. Na ocasião, recebeu como convidados Serginho Meriti, Luiz Airão, Dunga, Alceu Maia, Délcio Carvalho e Noca da Portela. Neste mesmo ano, com direção de Túlio Feliciano, fez o lançamento do CD no Teatro Rival BR, no Rio de Janeiro. Neste show interpretou composições de sua autoria que foram sucesso com grandes artistas da MPB: Zeca Pagodinho, Emílio Santiago, Simone, Agepê, Bezerra da Silva, Martinho da Vila e Neguinho da Beija-Flor, entre outros, além de composições do disco.
Em 2005, ao lado de de outros convidados como Walter Alfaiate, Noca da Portela, Luiz Carlos da Vila, Rico Doriléu, Darcy da Mangueira e Roberto Serrão, foi um dos convidados de Chico Salles no "Projeto sambando no forró", apresentado no Espaço Armazém Enseada, no Rio de Janeiro.
Em 2009 lançou o CD "Preceito" no qual interpretou diversas composições inéditas e regravações de alguns de seus sucessos, tais como "Pago pra ver" e "Seu balancê" (gravadas por Zeca Pagodinho), "Tudo que sou" (gravada por Aline Calixto) e ainda "Partido remendado", gravada por ele mesmo anteriormente.
Tem mais de 200 músicas gravadas por diversos artistas de renome: Zeca Pagodinho ('Seu balancê'), Martinho da Vila ('Mulheres' e 'Hoje tem amor') e Agepê ('Me leva').
Entre seus parceiros constam Nélson Rufino, Paulinho Rezende, Roque Ferreira e Toninho Nascimento.
Fonte:

segunda-feira, 11 de julho de 2011

Mexendo no baú.


(Fragmento do livro Álcool Ajuda ou Autoajuda - Fred Explica - 1999)
Nota: Os textos postados neste blog não obedecem a nenhuma ordem cronológica.
(...)

Filmes como o Candelabro Italiano, de 1962, despertariam o romantismo e acalmariam um pouco a rebeldia dos tempos de James Dean.

Viriam os Beatles, os Rolling Stones, a Jovem Guarda, os Hippies e muitos outros.
A Bossa Nova.
Paz e amor - uma mensagem
sempre atual.
Foto em: stum.com.br
Viria o movimento paz e amor, por causa das mortes no Vietnã.
A Guerra Fria.
Medo de o mundo acabar.
A segurança do planeta nas mãos de americanos e soviéticos.
Toda a humanidade temia, ingenuamente, uma decisão amalucada, catastrófica e irresponsável.
Aqui, a ditadura a pleno vapor.
Eder Jofre, Pelé, Garrincha e uma infinidade de gênios do esporte, principalmente no futebol.
Chico Buarque em suas composições musicais de fundo político, algumas nas entrelinhas, outras nem tanto.
O exílio dos idealistas.
O Pasquim era o jornal da esquerda genuinamente brasileira. Suas abordagens traziam o humor faceiro da nossa gente. Virava e mexia a ditadura fechava suas portas sob os protestos convenientemente silenciosos dos fanáticos leitores.
Encantos e desencantos no cotidiano jovem da minha geração.
Rica em valores e pobre em liberdade.
Política, mulher e futebol eram os temas vadios da precocidade que logo descobriria nas drogas uma fuga pela desesperança e por algum romantismo.
Falando em drogas um fato marcou a memória de todos.
- O Dom foi preso!

- Como? - perguntamos ao Carlinhos que trouxera a informação como quem queria se fazer o centro das atenções pela novidade revelada.

- Ele precisava de grana para comprar umas bolas; estavam descarregando livros escolares na Livraria Roma e o Dom entrou na fila, como se estivesse ajudando no trabalho. O pessoal da livraria achando que ele fazia parte da equipe do caminhão e esta equipe, acreditando no contrário.

Quando achou conveniente, ele saiu da fila com os livros até o queixo e subiu andando pela Rua Rio de Janeiro. Quando perceberam o cara de pau gritaram – pega ladrão! Nisso o cara começou a correr e um dos pedestres colocou o pé em sua trajetória causando a queda e conseqüente captura. Ele foi conduzido ao distrito policial, finalizou.
- E agora, como é que fica? – perguntei ansioso e preocupado com o amigo.
- Fiquei sabendo, continuou, que o senhor Geraldo levou um advogado até lá e confessou que seu filho não estava no gozo de suas perfeitas faculdades mentais, conseguindo que o transferissem para internação e recuperação no Hospital Santa Clara.
- Dos males o menor, pensei aliviado.
Mas a solidariedade da turma não tinha mesmo limites.
Quando liberaram as visitas, começou um movimento atrevidamente jocoso de aproveitar os encontros e levar Bombons Sonho de Valsa ® para o presidiário do hospital. Mais tarde fui saber que retiravam o miolo branco do chocolate e o recheavam com "Maria Joana" para que o pobre coitado ficasse abastecido e não sofresse crise de abstinência.
Esse tipo de informação somente chegava ao meu conhecimento depois de consumado o fato.
Eu era tido como uma espécie de freio para atitudes de grande risco.
Talvez por ser calculista em extremo costumasse analisar as ações e suas conseqüências. Por certo, se eu tomasse ciência do plano dos bombons, certamente daria o contra. Existia um risco que envolvia, além dos amigos solidários, o próprio paciente, havendo a remota possibilidade de dar errado.
Dom estava em recuperação, com período determinado como pena disciplinar e, se fosse descoberta tamanha ofensa à segurança do Hospital, naturalmente o período seria estendido.
Dessa forma, tão cedo poderíamos desfrutar da companhia do amigo.
Ora, o que a princípio poderia parecer um ato de companheirismo era, na verdade, mais uma forma de desafiar o sistema opressor.
Não se conseguia ânimo e dignidade no horizonte que o regime autoritário e a conjuntura internacional apresentava.
As drogas àquela época tinham outro significado.
As conversas eram relativamente ricas em filosofia.
Pelo menos, pensávamos assim.
Esse tempo passou muito rápido.


Estão batendo no peito
Brasil, pátria amada, Brasil.
Sentido! Soldado direito
Chamam-te baixinho, sem jeito.
Quarenta se passaram, ou trinta?
Ou nunca saíram do prato.
Civil cidadão de quinta?
Ou pierrô parado de quatro?
Sonhos enterrados nos porões
Da vontade sempre alheia
Mataram almas
Deixaram corpos
Inertes, sombrios,
Foram-se as rimas
Se foram as mágicas noites
Ingênuas, boêmias e musicais
Enfraquecidas nas alcovas dos vícios
Covardes pela luta fugida
Reclamar e não bradar
Amar a causa
e não vestir as calças
Isso também corrói
o que sobrou da honra
De fora - paz e amor
Uma coisa meritória daquele povo
"se é para morrer, que seja no maior barato"
Americanos fazendo sombra
Eles sempre perderão vidas
em nome do ideal de seus gabinetes
Pobre povo inebriado pelo patriotismo histriônico
Curral dos mocinhos do cinema
Vítimas, vítimas, vítimas
e não sabem

(...)
Fred, 11/07/2011