sábado, 2 de julho de 2011

Casa antiga, vida nova, o terno azul e o casamento


(Fragmento do livro Álcool Ajuda ou Autoajuda - Fred Explica - 1999)
Nota: Os textos postados neste blog não obedecem a nenhuma ordem cronológica.
"quando convivemos muitos anos com as pessoas, acabamos não percebendo nelas as marcas do tempo..."
(...)


Igreja de Lourdes BH: em br.olhares.com

Segundo prescrição médica eu deveria evitar qualquer substância que contivesse álcool na sua composição e, isso, incluía o vinagre.
Estava tão certo de que nunca mais faria uso da bebida propriamente dita, que em minha primeira refeição fiz questão de uma alimentação normal, icluindo esse tempero na salada.
Minha esposa repreendeu mas, mesmo assim insisti dizendo que a fermentação não faria mal.
Ela sabe quando finco o pé e, sob olhares desconfiados dos filhos à mesa, não insistiu: seu pai sabe o que está fazendo. Assunto encerrado.
Psicossedim® 25 mg; um pela manhã, outro no almoço e, o último à noite.
Obedeci a receita durante uma semana.
Depois comecei a quebrar ao meio os comprimidos para que o tranqüilizante não viesse, no futuro, substituir a bebida.
Manteria o medicamento até o dia do casório para depois, após consultar o médico, suspender o uso definitivamente.
- Fred, você tem de comprar um terno novo, lembrou minha esposa.
- Eu sei, e será azul claro, respondi de imediato.
- Não, pelo amor de Deus, essa cor não é própria. Tem que ser alguma coisa mais sóbria. Muitas pessoas importantes estarão presentes e, além de tudo, é o casamento da nossa primeira filha e você vai destoar no ambiente. – exclamou deixando entender, claramente, que eu estava, ainda, meio fora das minhas faculdades.
- Que se dane a moda, não abro mão disso! – retruquei.
Reunião do comitê de organização...
Eles compreendiam que a decisão, à primeira vista, completamente fora dos padrões seria cumprida em função da minha habitual teimosia.
- Tá bem; concordaram. Quem sabe, por acharem que eu pudesse desistir em virtude da impaciência que tinha pelo entra e sai nas lojas à procura de qualquer produto.
Conhecendo minha turma percebi que se tratava, também, de um artifício para me tirar de casa, levantar o astral e, assim, talvez mudasse de idéia ou me convencesse pelos argumentos dos vendedores das lojas.
Nesse clima, acompanhei a comitiva pelos Shopings mantendo-me irredutível: não chefe! Eu quero é azul claro, da cor do céu - entendeu? – repetia isso toda hora.
Depois de uma verdadeira via sacra encontrei a encomenda meio escondida, como se estivesse a minha espera.
Céu de Brigadeiro – se me fosse dado escolher o nome da tonalidade.
Encontrei uma gravata adequada, entrei numa cabine de prova e saí aguardando aplausos...
Realmente, o astral cavernoso dos dias da internação foi embora.
O conjunto da obra não estava nada extravagante e sim, sugerindo paz e serenidade.
Que a moda continuasse a se danar.
Mais valia a mensagem subliminar que eu queria transmitir.
- É pai, não é que ficou bonito?...
Essa reação trouxe alguma desconfiança por um tempo.
Será que gostaram mesmo, ou fui eu quem acabou ganhando a queda de braço?

///                              
Agitação e ansiedade em casa.
Chegou a data do grande evento.
Minha filha, a noiva, passaria o dia inteiro numa empresa especializada em preparativos pré-matrimoniais onde a prometida entra com traje de passeio e, depois, vira estrela de cinema.
Diante de uma rotina incomum e agitada, a aflição de todos acabou fazendo com que eu exagerasse na dose do Psicossedim®, por conta própria.
Alguma coisa deveria estar acontecendo com o meu sistema nervoso central. Estava sentindo uma enorme sensação de pânico e o remédio não fazia efeito.
Preocupado, fui até uma drogaria próxima e relatei o caso ao farmacêutico antes que aumentasse, ainda mais, a dosagem.
- Fred, você está maluco. Faz o seguinte: consiga dois pés de alface com as raízes. Retire somente as raízes, lave-as bem, bata no liquidificador com dois copos d’água e um pouco de açúcar e vá bebendo aos poucos até a hora de sair pra cerimônia.
Santo remédio.
Mesmo diante de toda família se aprontando, o chato do telefone não dando trégua, os banhos de última hora e um falatório enlouquecedor, consegui calma para me vestir em primeiro lugar, com a tranqüilidade de um monge.
Lembravam-me a todo momento dos detalhes do cerimonial.
A comitiva chegou em tempo na Igreja de Lourdes em BH.
Amigos que eu não via há muitos anos estavam ao redor da igreja e, na medida em que conseguíamos nos identificar, uma festa.
Fechamos um grande círculo de cabelos ficando grisalhos.
A calvície de alguns e as rugas da vida em todos nós.
Logo começaram as lembranças dos bons tempos e a conversa animada quase me fez esquecer do motivo principal do dia.
-E os goles Fred?
Os parceiros de outrora não sabiam que o alcoolismo já fazia parte do passado.
- Eu bebi o Oceano Atlântico e deixei o Pacífico para vocês, respondi ante olhares surpresos e um pouco decepcionados (existe uma confraria etílica – os "apreciadores" são preconceituosos e costumam discriminar quem sai da roda) dos velhos parceiros.
Quando comecei a contar todo o processo, fui interrompido.
- Seu Fred, por favor, está na hora da noiva chegar. É melhor o senhor ficar à frente da Igreja para os procedimentos de entrada – disse uma agitada senhora com uma prancheta nas mãos.
Despedi-me dos amigos combinando nos encontrarmos em breve.
Reconheci naqueles momentos o passar inexorável do tempo.
Notei que acharam meu envelhecimento maior que o deles.
É fácil explicar.
Como eles se reuniam freqüentemente nos bares de Belo Horizonte, é como diz o ditado: água muito olhada não ferve. Ou, quando convivemos muitos anos com as pessoas, acabamos não percebendo nelas as marcas do tempo.
Eu os achei acabados e, eles, a mim também.
Minha filha tem o predicado de reluzir interna e externamente seus encantos e, quando saiu do carro, escutei suspiros e comentários elogiosos da pequena multidão que se aglomerava pelas escadas.
Haviam-me ensaiado a forma de caminhar lentamente até o altar.
No trajeto, eu com o já famoso terno azul claro e, ela, em fulgurante branco realçado por um longo véu, como diria algum apresentador de desfile de modas.
Minhas pernas inseguras não mantinham o ritmo das passadas que fora combinado mas, a noiva, com leves apertos de mãos, ia corrigindo.
Estavam todos nos olhando e, isso, incomodava muito.
- Relaxe pai, observava sussurrando entre os dentes enquanto sustentava o adequado sorriso de manequim.
Longo o percurso de uns 30 metros.
Ao invés de fixar o olhar no altar eu ficava acenando com a cabeça para os presentes sem a postura conveniente.
Fiz questão de cumprimentar o Ligeirinho que, dos companheiros do hospital, era dos poucos que consegui distinguir na multidão. Cheguei a dar-lhe um tapinha nas costas e um largo sorriso, agradecendo tão honrosa presença e quebrando o protocolo.
Ali estavam autoridades políticas influentes (minha filha casou-se em família do meio político) e, isso, sem contar parentes e amigos que não via há tempos e, o contestador (ou o comunista falido), mais uma vez demonstrando, em pequenos gestos, o sentimento de rebeldia social que sempre brota no fundo da alma.


(...)


Fred, 02 de julho de 2011

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