segunda-feira, 18 de julho de 2011

Outros causos do hospital


(Fragmento do livro Álcool Ajuda ou Autoajuda - Fred Explica - 1999)
Nota: Os textos postados neste blog não obedecem a nenhuma ordem cronológica.


(...)
Em: Sonho-Sombrio.blogspot.com
Retornando ao ambiente do hospital, as brincadeiras continuavam e, em outra oportunidade instigaram um dos internos - um dos mais desligados da realidade -  procurar voluntários para uma excursão a Ouro Preto.
Era necessária a anotação do nome em um papel conseguido na administração, obviamente com outro pretexto.
Precisava-se de, no mínimo, quarenta assinaturas e, em seu delírio, o ônibus já estaria estacionado à porta do hospital.
Pronto, virou idéia fixa.
Todos os dias éramos abordados pelo elemento que insistia no pedido querendo que assinássemos o tal papel.
Alguns davam um rabisco qualquer, se livrando do inconveniente.
Eu me negava assinar dizendo que precisava saber se o ônibus possuía sanitário para as nossas necessidades.
Como não sabia a informação, retirava-se para procurar.
Isso durou vários dias.
O pobre indivíduo assumiu a fantasia da liberdade e nós alimentávamos o seu pequeno sonho.
(...)
Tocão se destacava pelo bom humor e seu quarto competia com o nosso em freqüência.
Ali jogávamos às escondidas, ingênuas partidas de buraco, ouvíamos piadas e ficávamos surpresos com o volume de informações sobre o que ocorria nos outros pavilhões.
- Fulano de tal do segundo andar está com AIDS!
O tal indivíduo pouco aparecia em nosso meio, além de maluco-depressivo, era arredio. O preconceito, de que tanto se fala, estava nele mesmo.
Fazia parte dos internos em apartamentos.
Ali as diárias eram mais salgadas, notando-se que o comportamento dos inquilinos era de grande melancolia.
Fez acreditar que a solidão prejudica o restabelecimento.
Um dia cruzei com um deles que carregava, no estilo Juca Chaves, um violão sobre os ombros. Tinha um aspecto estranho. Olhos esbugalhados com se estivesse sob efeito de anfetaminas. Sobre as veias dos braços vários hematomas. Era agitado e falava pelos cotovelos. A experiência que a vida me deu nesses casos fez com que o abordasse:
- Cara, que bom, você toca violão? – perguntei, querendo me aproximar.
- Não, respondeu de imediato.
- Então, obviamente, indaguei: de quem é o instrumento?
- É cumpade, meus velhos me deram para distrair por aqui. - E você, toca alguma coisa?
Tomei de suas mãos e observei que estava razoavelmente afinado. Consegui me lembrar de uma música do Chico, creio que era Quem Te Viu Quem Te Vê e toquei arrastando nos acordes (a cabeça estava devagar). Enquanto executava, o proprietário andava de um lado pro outro e, quando terminei, devolvi e recebi de volta um:
- Cara, você conhece esse negócio!
Que nada, eu estava convicto que o desempenho ficara abaixo da crítica.
Mais um que sumiu.
Nunca mais apareceu no pátio, nos corredores ou nas reuniões espíritas.
Mistério. 
Ele deveria ser morador da zona sul de Belo Horizonte, fechado em preconceitos sociais e o pior, assustado pelo mundo.
Mais tarde fiquei sabendo que o local do meu internamento fora sugerido por um médico, talvez em função de evitar a perda de um convívio comunitário mais intenso.
As pessoas que deixam os vícios com a ajuda de tratamentos psiquiátricos tendem a se isolar durante e, depois, por um longo período.
Acredito que isto se dá em função de uma espécie de machismo enraizado em nossos costumes.
- Ele é fraco, precisou de se internar para largar a bebedeira! - falariam com certeza, referindo-se a mim.
Numa sociedade que aprendeu a dicotomia do vencedor e do perdedor, é bem possível que isto aconteça na mente de algumas pessoas, principalmente daquelas que continuam usando as bengalas dos vícios.
É paradoxal e seria motivo para longas teorias. 
No entanto esse não é o objetivo principal dessa narrativa.
(...)
Uma vez, abordado por um dos internos, começamos um assunto recorrente (um, sempre querendo saber do outro os motivos da internação).
Disse-me que era vítima de depressão profunda causada pela infidelidade de sua esposa com um parente.
Pediu sigilo absoluto em função do constrangimento que certamente seria exposto.
Usei argumentos para confortá-lo, senti pena, e mantive a confidência em segredo.
Guardávamos informações pessoais e esmerávamos nos conselhos. 
Era a característica do nosso grupo.
Entretanto, logo descobrimos que o tema já era do conhecimento geral.
Assim sendo logo recebeu o apelido de boi, numa alusão direta aos seus declarados chifres.
Era saudado por mugidos comandados pelo infame do Tocão.
A princípio desconfiávamos que a narrativa era fruto da sua imaginação não fossem, mais tarde, confirmadas por parentes.
Todavia, já habituado com as brincadeiras não se abateu e, ao contrário, passou a integrar a orquestra bovina.
Outro que melhorou da água pro vinho.
Deixou de ter pena de si mesmo e de ficar como se estivesse procurando alguma coisa pelo chão.
Ganhou uma postura melhor e já caminhava com o nariz apontado para frente.

 (...)
Robério tinha seus momentos de depressão.
Ficava sentado no chão no final de um corredor sem saída, encostado em uma parede e ladeado por outras duas com a cabeça enfiada entre as pernas como de estivesse chorando.
Numa dessas criei coragem e interpelei:
- O que que há amigo! Posso ajudar?
No primeiro contato respondeu negativamente apenas com um menear de cabeça.
Pensei me afastar, deixando-o com seus problemas.
Era uma pessoa singular, participava de saudáveis e engraçadas armações, sempre solidário e às vezes daquele jeito; precisava de ajuda e decidi intervir.
Nunca esqueci e jamais esquecerei do socorro que me prestou em meu primeiro dia no refeitório.
Como investigador de nobre causa, comecei a abordar pessoas ligadas a ele há mais tempo no sentido de obter informações de suas atividades.
O resultado foi triste.
Robério era um policial. Participara de várias blitz em favelas ou nas ruas da metrópole. Difícil não imaginar tiroteios e mortes nessas investidas, sem contar o meio, às vezes contaminado, com o qual era obrigado a conviver. Como o seu perfil psicológico não indicava vocação para a atividade, eram absolutamente normais os períodos de intenso abatimento.
Não havia nada a fazer.
O monstro que vinha atormenta-lo tinha a força de um dragão.
Mesmo assim ficou sabendo da minha intenção e respondia com um sorriso quando o encontrava naquelas fossas profundas.

(...)
As brincadeiras eram verdadeiros bálsamos e, numa ocasião, furei o fundo de um copo descartável com a ponta do cigarro, de forma a utilizá-lo no bebedouro com a ponta do dedo tapando o buraco.
Uma grande fila se formava em virtude do forte calor de janeiro.
Aguardei o momento adequado.
Interpus à frente de um companheiro, daqueles que tinham mania de tudo pedir.
Tapei o buraco, enchi o copo até a borda e depois degustei o precioso líquido com expressão aliviada.
Como era natural, o recipiente logo foi pedido emprestado pelo amigo que se destacava por uma completa ausência de raciocínio lógico.
Saí e fiquei ali perto observando as conseqüências.
A água saia por baixo, o copo não se enchia e a fila dos impacientes crescia em tamanho e irritação.
Como a vítima não deu pela coisa apressei-me para explicar esportivamente o fato.
Mostrei o buraco que deveria ser tapado e evitei instigar qualquer tipo de gozação o que, infelizmente, era habitual e, às vezes, passava dos limites.
O evento não deixou de trazer algum benefício ao personagem que a partir de então passou a ficar mais atento aos acontecimentos.

(...)
Pode parecer que a narrativa esteja demonstrando uma espécie de aventura divertida e que a coisa não era tão difícil como na verdade era.
A aflição dos colegas quanto às altas de internação era patética.
Periodicamente, tínhamos consultas médicas que eram ansiosamente esperadas.
- Como está a minha situação doutor, quando vou ter alta?
Obtínhamos, sempre, respostas evasivas, sem palavras que nos pudessem tranqüilizar.
Acreditava num certo interesse dos médicos em nos manter internados, haja vista que as consultas se resumiam numa simples pergunta:
- Tudo bem com você?
Essa forma lacônica deixava passar indiferença e isso revoltava.
- Deixa pra lá, pensei comigo.
Ora, os médicos estavam realmente fazendo uma consulta.
Eles perguntavam alguma coisa...
Queríamos conversar por um tempo maior. Pedíamos atenção. Perguntas e assuntos não faltavam.
Os doutores da cabeça humana mais pareciam gerente de banco atendendo correntista pobre.
No entanto, teria eu gabarito para avaliar profissionais que dedicaram boa parte de suas vidas a estudos acadêmicos de uma área que não domino?
Como estou relatando as emoções da época, era assim mesmo a nossa aflição.
Por isso deixei de atender algumas convocações.
Ouvir "tudo bem?". Pra quê?
Não fazia sentido!
O pessoal que estava mais acostumado com os procedimentos do local se dava melhor.
Alberto, por exemplo, quando foi internado, negou se levantar da cama enquanto não lhe administrassem o soro fisiológico, até que o seu pedido foi acatado.
Fiquei sabendo, no dia seguinte, que eram válidas suas exigências.
Quando chegou, pálido e com aparência mórbida, todos imaginavam uma situação muito séria.
Os colegas comentavam:
- Esse não vai longe, coitado!
Todavia, no dia seguinte à aplicação do soro, lá estava ele jogando tênis de mesa, com os reflexos apurados, vencendo as partidas e eu, sob efeito dos tranqüilizantes servindo às brincadeiras dos que esperavam a vez de entrar no jogo.
Logo eu que sempre me dava bem nesse esporte de salão.
Mas, era bola prum lado e jogador pro outro...
O conhecimento é vital em tudo nesta vida, no entanto eu não queria me doutorar no campo das internações repetidas. 

Alberto tinha muitas à minha frente.
(...)
Prevenido contra os filadores do pavilhão, argumentei que somente cederia cigarros aos internos que me apresentassem atestado médico autorizando-os a fumar.
Tal exigência tornou-se corriqueira entre os fumantes que compravam os próprios cigarros e, logo, o problema foi resolvido.
Os atestados, obviamente, 
foram negados.
Os médicos não devem estar gostando nada disso, pensei.
Certa feita um deles me perguntou, com rara simpatia:
- Isso é coisa sua, não é Fred?
Confirmei com um discreto sorriso.

(...)
Estávamos organizados em grupos como acontece em qualquer sociedade e o appartaid cultural formava-se naturalmente.
Não que fossemos afeitos a qualquer tipo de discriminação.
Pelo contrário, quantas vezes tentamos trocar experiências ou informações com os companheiros, mas, por ali imperava uma espécie de culto personalista onde alguns se imaginavam os senhores das verdades ou conhecedores de intrincadas questões filosóficas.
O alcoolismo desenvolve uma estranha auto-suficiência.
Como qualquer droga, as funções do cérebro ficam superestimuladas, criando-se teses definitivas numa lógica de difícil contestação. Como dizia Einstein: aquele que tenta se pôr como juiz no campo da verdade e do conhecimento é afundado pela risada dos deuses.
Evitava discussões daquela ordem. Estava enjoado de conversas que serviam, somente, para justificar comportamentos de completo desajuste social.
Uma peça teatral que me enfastiava e, como se de um novo palco as cortinas começassem abrir, principiava a descoberta de atrações bem mais importantes.

(...)
Fred, 18/07/2011

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