sexta-feira, 29 de julho de 2011

O Lenhador - Catullo da Paixão Cearense


Extraído do livro "Meu Sertão" de Catullo da Paixão Cearense
"...tudo o que se lê em "Meu Sertão", é pura fantasia  e, se não fosse fantasia, não era obra de arte. A alma de Catullo é que nos canta ali e é por isso que o admiramos a ele.  As imagens são invenção dele, mas sabemos que os caipiras são mui capazes de as ter assim belíssimas,  por vezes maravilhosas. Ainda há pouco ouvi das mais originais da boca de um carreiro analfabeto, o célebre Sabino Grajaú, de Alagoas. 
"Meu Sertão" não é o sertanejo fotografado; é o sertão no que tem de poético, simples e selvagem, compreendido, sentido, evocado pela alma de seu filho, que se educou no Rio. É uma saudade posta em verso; saudade que se deleita em ir pintando as cenas mortas, refazendo gentes, vistas, costumes interessantes, usanças particulares, pondo em tudo certa nostalgia bem real, muito emotiva. 
É a missão do poeta.  O poeta não decalca, não trasfolha, não cobre riscos; debuxa apenas os contornos, calca os tragos de reforço, faz sombras, combina cores, que sejam transuntos de sua alma, pedaços de suas emoções."
José Oiticica

O Lenhador

Foto em cdandlp.com
Um lenhadô derribava
as árve, sem percisão,
e sempe a vó li dizia:
meu fio: tem dó das árve,
que as árve tem coração.


O lenhadô, num muchocho,
e rindo, cumo um sarvage,
dizia que os seus conseio
não passava de bobage.


Às vez, meu branco, o marvado,
acordano munto cedo,
pegava nu seu machado,
e levava o dia intero,
iscangaiano o arvoredo.
E a vó, supricano im vão,
sempe, sempe li dizia:
meu fio: tem dó das árve,
que as árve tem coração.
Numa minhã, o mardito,
inda mais bruto que os bruto,
sem fazê caso dos grito
da sua vó, que já tinha
mais de noventa janêro,
botô nu chão um ingazêro,
carregadinho de fruto.
Doutra feita o arrenegado
inda fez munto pió:
disgaiô a laranjêra
da pobrezinha da vó,
uma véia laranjêra,
donde ela tirô as frô
prá levá no seu vistido,
quando, virge, si casô,
cum o véio, que tanto amou 
cum o difunto, o falicido.
E a vó, supricano im vão,
sêmpe, sêmpe li dizia:
"meu fio: tem dó das árve,
que as árve tem coração!"
Do lado do capinzá,
adonde pastava o gado,
tava um grande e véio ipê,
que o avô tinha prantado.
Despois de levá na roça
c'uma inxada a iscavacá,
debaxo d'aquela sombra,
nas hora quente do dia,
vinha o véio discansá.
Se era noite de luá,
ali, num banco de pedra,
cuma viola cunversano,
o véio, já caducano,
rasgava o peito a cantá.
Apois, meu branco, o tinhoso,
o bruto, o mau, o tirano,
a fera disnaturada,
um dia jogô no chão
aquela árve sagrada,
que tinha mais de cem ano.
Mas porém, quando o tinhoso
isgaiava o grande ipê,
viu uns burbuio de sangue
do tronco véio iscorrê!
Sacudiu fora o machado,
e deu de perna a valê!
E foi correno...correno!
Cada tronco que ia vendo
das árve, que ele torô,
era um braço alevantado
dum home, meio interrado,
a gritá: Vai-te, marvado!
Assassino! Matadô!
Foi Deus quem te castigou!
E foi correno! correno!
Cada vez curria mais!
Mas porém, quando já longe,
uma vez oiô prá-traz,
vendo o ipê alevantado,
cumo um home insanguentado,
cum os braço todo torado...
cada vez curria mais!
Na barranca do caminho,
abandonado, um ranchinho,
entre os mato entonce viu!
Que vê si apara e discansa,
e o ranchinho prú vingança,
im riba d'ele caiu!
E foi correno, e gritano!
e as árve, que ia topano,
e que má pudia vê,
cumo se fosse arrancada
cum toda a raiz da terra,
numa grande adisparada
ia atrás dele a corrê!
Na boca da incruziada,
veno uma gruta fechada
de verde capuangá,
o home introu pulos mato,
que logo que viu o ingrato,
de mato manso e macio,
ficô sendo um ispinhá!
E foi outra vez correno,
cansado, pulos caminho!
Toda a pranta que incontrava,
o capim que ele pisava,
tava crivado de ispinho...
Curria e não aparava!
Ia correno sem tino,
cumo o marvado, o assassino,
que um inocente matô!
Mas porém, na sua frente,
o que ele viu, de repente,
que, de repente, impacô?
Era um rio que passava,
ali, naquele lugá!
O rio tinha uma ponte,
Que nóis chamemo pinguela,
O home foi travessá!
Pôs o pé.. Ia passano.
E a ponte rangeu quebrano,
e toca o bicho a nadá!
O bruto tava afogano,
mas porém, sêmpe gritano:
socorro, meu Deus, socorro
socorro, que eu vô morrê!
Eu juro a Deus, supricano,
nunca mais na minha vida
uma só árve ofendê!
Entonce, um verde ingazêro
que tava im riba das água,
isticou um braço verde,
dando ao home a sarvação!
O home garrô no gaio,
no gaio cum os dente aferra,
foi assubino, assubino...
e quando firmô im terra,
chorava cumo um jobão!
Bejano o gaio e chorano,
dizia: Munto obrigado!
Deus te faça abençoado,
todo ano tê verdô! (ter verdor)
Vô rebentá meu machado!
Quero isquecê meu passado!
Não serei mais lenhadô!
Depois desta jura santa,
pra tê de todas as pranta
a graça, o perdão intêro
dos crime de hôme ruím,
foi se fazê jardinêro,
e não fazia outra coisa
sinão tratá do jardim.
A vó, que já carregava
mais de noventa janêro,
dizia que neste mundo
nunca viu um jardinêro
que fosse tão bom assim!
Drumia todas as noite,
dêxano a jinela aberta,
pra iscutá todo o rumô,
e às vez, inté artas hora,
ficava, ali, na jinela,
uvindo o sonho das frô!
De minhã, de minhã cedo,
lá ia sabê das rosa,
dos cravo, das sempreviva,
das maguinólia cherosa,
se tinha durmido bem!
Tinha cuidado cum as rosa
que munta vó carinhosa
cum os seus netinho não tem!
Dizia a uma frô: Bom dia!
Como tá hoje vremêia!
Dizia a outra: Coitada!
Perdeu seu mé! Foi robada!
Já sei quem foi! Foi a abêia!
Dispois, cum pena das rosa,
que parece que chorava,
batia leve no gaio,
e as rosa disavexava
daqueles pingo de orvaio!
Ia panhano do chão
as frô que no chão caia!
Dispois, cum as costa da mão,
alimpano os pingo dágua,
que vinha do coração,
batia im riba do peito,
cumo quem faz cunfissão.
Quando no sino da ingreja
tocava as Ave Maria,
nos cantêro, ajueiado,
pidia a Deus pulas arma
das frô, que naquele dia
no jardim tinha interrado!
E agora, quando passava
junto das árve, cantano,
cheio dágua carregano
o seu véio regadô,
as árve, filiz, contente,
que o lenhadô perduava,
no jardinero atirava
as suas parma de frô!



Catullo da Paixão Cearense

(Poeta brasileiro )

1863 - 1946

Nota: 
Catullo era o contestador da sua época.  Usava a linguagem dos sertanejos em suas grafias como forma de integrar o leitor ao ambiente da inspiração e, também, para fustigar os intelectuais do seu tempo. 
Como todo gênio, era criticado por uns poucos e admirado pela maioria. 
As árvores do nosso país sabem falar.  
Querem ouvi-las?! 
Entendam a alma de Catullo.

Fred, 29/07/2011

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