segunda-feira, 16 de maio de 2011

O Hospital e Sua Gente





(Fragmento do livro Álcool Ajuda ou Autoajuda - Fred Explica - 1999)
Nota: Os textos postados neste blog não obedecem a nenhuma ordem cronológica.

(...)
Foto em: oniros.com.br
Lugar de aspecto grave e sombrio misturando as angústias dos hospitais psiquiátricos com o espírito faceiro dos antigos internatos ginasiais. 
Que estranho fascínio exercia o ambiente. 
Mais um desafio - Quis enxergar assim. 
Uma situação inusitada... 
Pensei redigir um diário. 
Como não dispunha de caderno, fui anotando os acontecimentos em qualquer pedaço de papel que aparecia pela frente. 
A agressão sofrida por uma funcionária grávida nos deixou revoltados e o responsável isolado em uma espécie de solitária apelidada de zero, talvez como referência à numeração dos andares. 
Um verdadeiro canil. 
Um corredor ladeado pelo corpo da construção, no andar térreo do prédio. 
Área descoberta com um pequeno telhado ao fundo para se proteger da chuva; uma cama e um sanitário. 
Ter aquele destino era o fim. 
Ali o infeliz ficaria cumprindo pena disciplinar. 
A enfermagem o utilizava também como ameaça e pretexto para manter a ordem e acalmar os exaltados. 
A construção era grande e tinha uma aparência pesada. 
No térreo funcionava a administração, a enfermaria e uma dependência que noutras épocas eram desenvolvidas terapias ocupacionais, mas, ficava constantemente fechada. Também nesse nível estava o refeitório, uma enorme sala de estar e um aparelho de televisão. 
Fui transferido pela manhã, com cara de velório, para outra ala de melhor qualidade. 
Dividiria o quarto com mais quatro indivíduos: dois em recuperação alcoólica; um cleptomaníaco e outro letárgico que ficava o tempo todo deitado com um sorriso meio idiota colado no rosto e olhando o teto como se estivesse curtindo o maior barato. 
As fichas foram passadas pelo Ligeirinho, um companheiro de quarto magricela que me apresentaram na chegada. 
Tinha o apelido porque, lia, pensava e caminhava muito rápido. Com ele divaguei sobre tudo o que era possível. Trazia consigo muitas informações; a cachaça o jogara ali - ele não se adaptava às convenções sociais e, em conseqüência, vivia enchendo a cara. 
Acredito que o exercício desordenado da intelectualidade acaba levando a isto. 
O cleptomaníaco logo foi embora. 

Suas atitudes revoltavam os demais pacientes impacientes.
Não agüentávamos mais os pequenos furtos.
Éramos subtraídos com muita freqüência.
Cigarros, bermudas, camisetas, isqueiros.

Objetos de pouco valor, mas de fácil transação na comunidade. 

O nível de tolerância já estava no limite. 
Alberto, do leito ao lado, num de seus arroubos de irritação chegou a enfiar goela abaixo sua escova de dentes no suposto ladrão que a utilizara e, não fosse nossa intervenção contendo violenta ação, o caso teria conseqüências mais sérias. 
Instalada a bonança, a tempestade era esquecida e a paz artificial dos tranqüilizantes transformava a atmosfera. 
O horário das refeições era muito rígido. 
Havia um grito, que não me lembro de quem e nem de onde vinha, avisando do almoço e do jantar. 
Se por algum motivo não comparecêssemos, não tinha perdão, ficaríamos com fome. 
A minha primeira refeição foi patética. 
Observei duas filas com cerca de cem internos. 
Uma bem menor, a do pessoal em regime alimentar e outra, comprida, para os demais. 
Fila indiana, bandejão de inox e talheres espalhados no balcão que iam sendo juntados para o almoço. 
Eu, em crise de abstinência, comecei a tremer e os talheres a trepidar e promover um barulho que chamou a atenção dos demais e logo vieram as brincadeiras: 
- Olha o chimbre...tá batendo biela...esse tá ruim mesmo..., e outras do mesmo gênero. 
A minha insegurança pelo inusitado piorava ainda mais a situação. 
As colheres, o garfo e a faca caiam no chão a todo o momento. 
Robério um dos internos contumazes, ou seja, já conhecia bastante o ambiente, vítima que era de constantes internações, saiu em minha defesa. 
- Vocês todos estiveram nesse mesmo ponto quando entraram pela primeira vez; deixem o moço em paz! – observou de forma enérgica. 
Todos se calaram. 
Depois disso, foi até uma mesa e marcou dois lugares. Tomou a bandeja de minhas mãos e, de forma solidária, foi escolhendo a comida conforme me orientava o paladar. Levou até o local demarcado, voltou à fila, serviu-se e logo estava à minha frente instruindo sobre os macetes do local. 
A tal fila do regime era, também, um engodo para fossemos atendidos fora da confusão e mais rapidamente. 
Você alegava desinteria ou prisão de ventre e teria, ainda, o privilégio de receber laranjas ou bananas conforme o caso. 
O manual de sobrevivência começava a ser transmitido pelo recente amigo. 
Após as refeições era bom desviar os olhos dos bebedouros mais próximos. Alguns internos usavam-nos na escovação dos dentes deixando entupidos os pequenos ralos com sobras de comida. Era de amargar! 
A alimentação seguia uma rotina austera. 
As sete da manhã o café. 
De oito as dez liberavam o pátio para recreação e compras na cantina. Entendi porque não vendiam café, mas, Coca Cola ninguém conseguiu explicar. Insisti, mas, nada... – Deixa pra lá, resolvi. 
Das onze às doze horas, o almoço. 
Até as quatorze, repouso. 
De quatorze às dezesseis, nova libertação para o pátio. 
Às dezesseis e trinta, café da tarde. 
O jantar, última refeição, era servido às dezoito horas. 
Alguns conseguiam assistir TV, não se importando com o barulho ou intervenções inoportunas dos outros colegas. 
As vinte e duas horas desligavam o aparelho, comandavam o recolhimento dos internos aos seus quartos, sempre com veementes protestos, e os pavilhões eram trancados – hora de dormir. 
A disciplina de horário fazia parte da terapia. Reconheci isso mais tarde. 
Eu estava permanentemente revoltado com a administração do hospital. 
Não aceitava o tratamento diferenciado dos internos. 
Não pleiteava privilégios, meu senso de classificação das enfermidades é que não concordava com as regalias a verdadeiros bandidos que por ali se alojavam. 
Não tinha certeza, mas, um interno e sua curriola, traziam na expressão o retrato do mal. 
Imaginação, sempre fértil, ficava fantasiando a possibilidade de se tratar de alguns beneficiados por sentença judicial conseguida pelos advogados do crime organizado (será que andei vendo muitos filmes policiais?). 
Causava profunda irritação o despreparo retratado nas respostas obtidas quando afirmavam através daquele pequeno guichê - um buraco na parede em forma de meia lua: 
- Aqui vocês são todos iguais! 
Queriam identificar ou nivelar personalidades e comportamentos totalmente distintos em um jargão que fazia sentir uma completa frieza no trato das doenças, colocando-nos num ambiente de penitenciária, alimentando culpas ou criando-as o que era mais grave. 
Que se tapasse aquele buraco infestado de administrativas ou, que ali se instalassem pessoas de nível humanitário mais adequado.

(...)
Fred, 16/05/2011

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