sábado, 12 de fevereiro de 2011

Um dia, dentro do hospital...


(Fragmento do livro Álcool Ajuda ou Autoajuda - Fred Explica - 1999)
Nota: Os textos postados neste blog não obedecem a nenhuma ordem cronológica.
(...)
"A psicologia das ruas me ensinou que, ao lidar com pessoas desse tipo, você não pode demonstrar fraqueza"



- Tá na hora do boteco!

Era esse o grito dos colegas anunciando o momento ansiosamente esperado.
As pílulas ministradas, constituídas por tranquilizantes, vitaminas e outras que, de acordo com as prescrições médicas, eram fornecidas dentro de pequenos copos de plástico descartável comumente usado para cafezinhos.
Ficávamos na fila com a mão estendida em concha para receber o que, nuns cinco minutos, mudaria a realidade.
Eu, Ligeirinho e Alberto voltaríamos ao quarto para ler ao som de uma FM  que tocava música de elevador e, depois, haveríamos de cair no sono.
Numa das visitas, um amigo dono de um botequim da minha rua, tinha me presenteado com um pequeno rádio de pilha, desses que a gente leva ao estádio de futebol.
Como o recinto era grande pensei melhorar o som, mas, como faze-lo?
Arranjei uma embalagem pequena de margarina, fiz pequenos buracos no fundo, encaixei o rádio e prendi com esparadrapo as beiradas tendo o cuidado de deixar os controles de fora.
Alberto e Ligeirinho, no princípio, achavam o trabalho meio engraçado.
- Isso não vai funcionar, diziam.
Todavia, observando meu empenho primeiro em conseguir o material necessário e, depois, na delicada montagem, passaram a se interessar pelo resultado.
Confesso que a obra alcançou o objetivo. 
Por estar abafado, o som ficou mais grave e, deixando o volume um pouco mais alto, permitia uma propagação agradável.
Não ficou por aí.
Próximo à quina onde se encontravam duas paredes e o teto fixamos o nosso som ambiente.
Guardando algumas ressalvas o trabalho foi elogiado, modéstia à parte, até pelos enfermeiros.
Isso gerou uma situação desagradável.
Nosso quarto que já era bastante freqüentado ficou repleto. 
As músicas atraíram muitos companheiros de infortúnio. Eles se assentavam nas camas ou ficavam de pé conversando sem parar.
Acabou o sossego de um primeiro dia em calma celestial.
O problema deveria ser resolvido dialeticamente.
- Gente; tenho uma questão para resolver com a ajuda de vocês!
- Qual é a temperatura normal do corpo humano? –completei.
Consenso geral: trinta e seis e meio, responderam.
- Então, se  somarmos a  temperatura dos nossos corpos teremos o calor que está fazendo aqui dentro, certo?
Fizeram a conta:  quinze vezes trinta e seis e meio dá, mais ou menos, quinhentos e quarenta graus.
Influenciados pelo resultado começaram a transpirar, sentirem-se abafados, deixando o local pouco a pouco.
Confesso ter abusado da ingenuidade circunstancial da turma, mas era a providência a ser tomada.
Entretanto, a paz reconquistada não seria duradoura. 
Logo um dos gatunos de plantão haveria de investir contra o equipamento em ocasião oportuna.
Não fosse um dos companheiros, o tal que raramente saía da cama, ter apontado o elemento, jamais teríamos conseguido recuperar o objeto.
Denunciado e, mediante as pressões que o nosso grupo exerceu na coletividade o indivíduo houve por bem devolver.
O larápio fazia parte do grupo barra pesada e logo veio a resposta contendo uma ameaça nas entrelinhas.
A minha cama ficava no fundo do quarto e, um dia depois do acontecimento, quando eu estava entrando, observei sobre minha cama uma coisa em forma de rosca redonda que lembrava excremento humano.
Detive-me a uns cinco passos e identifiquei a brincadeira.  
Tratava-se daquelas imitações de plástico que são vendidas nos camelôs. 
Eu conhecia o produto há anos.
Consegui pensar rápido.
Deduzi que só poderia ser o suspeito mandando recado.
Calculei que os responsáveis deveriam estar às minhas costas, na porta de entrada, aguardando a reação.
A psicologia das ruas me ensinou que, ao lidar com pessoas desse tipo, você não pode demonstrar fraqueza.
Acelerei os passos, tomei o objeto nas mãos e, virando de repente, atirei na direção da entrada, sabendo que o "brincalhão" estava ali.
Não deu outra - caiu na mão certa.
Ante a surpresa do feitiço ter virado contra o feiticeiro, eu disse logo em seguida:
- Cara, vai arrumar outro mané, você não sabe com quem está lidando!
O blefe deu certo.  
Ficamos nos olhando dentro dos olhos como fazem os lutadores antes do combate.
No entanto, ele se retirou com um sorriso amarelo e uma interrogação. 
Seguiram-se-lhe os comparsas em estranha romaria.
Nunca mais eu vi essa turma no hospital.
Tudo isso se deu com o quarto vazio dos outros internos. 
Os companheiros, conhecendo meu temperamento meio estourado e, pensando que algo de ruim pudesse acontecer, acharam por bem ficar pelos corredores.  Acredito, também, que tinham receio de que o protagonista do roubo pudesse exercer alguma pressão a fim de saber quem fora o dedo duro.
Eu era a vítima.
Tive um período de abatimento depois disso.  
O objeto do furto, além do sentimental, não tinha outro valor para tanta indignação e mais, se eu estava em paz pregando esperança como, então, ter reagido daquela forma?
Voltei às palavras consoladoras dos livros e com a música do Legião Urbana na cabeça.
... é preciso amar as pessoas como se não houvesse amanhã...
(...)
Fred, 12/02/2011

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