domingo, 9 de janeiro de 2011

Um Verdadeiro Irmão


(Fragmento do livro Álcool Ajuda ou Autoajuda - Fred Explica - 1999)
Nota: Os textos postados neste blog não obedecem a nenhuma ordem cronológica.
ZZFred
(...)


"Os mais velhos eram respeitados naturalmente e, na maioria das vezes, temidos por sua energia moral e pelo acúmulo de experiências. Nos transportes urbanos não ficavam de pé. Nem eles nem as mulheres grávidas ou não. Era natural e bonito ceder lugares, respeitosamente, a essas pessoas"
Anos sessenta 

Quando observo a insegurança das ruas de hoje e brinco que os trombadinhas da época éramos nós mesmos, não estou falando a verdade.
Realmente as esquinas tinham os seus donos e seus regulamentos de conduta, fidelidade, honra e comprometimento irrestrito com a amizade.
Lembro-me de um menino negro muito carente que ganhamos em nosso meio.
Sua cor nunca foi referência e, ai de quem manifestasse preconceito!
Destacava-se pela presença de espírito, inteligência, humor e simpatia, suas marcas registradas.
Como naquele tempo todo cidadão negro era logo apelidado de Pelé, com ele não aconteceu diferente.
Conseguiu uma caixa de engraxate e começou a faturar alto com o seu trabalho.
Era nosso protegido, irmão mais novo de todos nós que participávamos como voluntários no seu negócio conseguindo, cada um, junto aos familiares um bom estoque de calçados.
Um serviço de primeira que foi logo reconhecido pelos moradores tornando a calçada onde colocava seus apetrechos cheia de sapatos durante todo o dia.
Ajuizado, aplicava seus ganhos metodicamente.
Pagava seus estudos e ajudava os familiares.
Curioso, nunca soubemos onde ele morava e, também, nunca o perguntamos – isso não era da nossa conta.
- Cadê o Pelé?
Todos queriam saber quando passava algum tempo ausente.
Raramente faltava e, quando acontecia, causava preocupações generalizadas.
Lembro das vezes em que deixava os sapatos encostados nas paredes dos prédios e saía para tomar refrigerante e comer um salgado no Bar do Vicente localizado a dois quarteirões do seu ponto comercial.
Os sapatos, alguns de custo elevado, ficavam por ali até sua volta, por mais que tardasse.
A segurança era total, nunca houve sequer um furto na sua ausência.
Em minha juventude, no centro da grande metrópole, só me lembro de uma ocorrência policial na região.
O ladrão foi flagrado pelos moradores que estavam à janela do quinto andar de um dos prédios e, enquanto a polícia não chegava, ficavam pipocando com a boca uns sons que pareciam tiros de revólver e emitindo gritos orientando onde estava o elemento.
O quarteirão no qual o meliante estava se aventurando tinha muitas casas, mas era contornado por edifícios em quase toda sua volta.
Não havia saída!
Os moradores nas janelas gritando, ele pulando dos telhados para os muros, dos muros para os quintais, dos quintais para os muros e o quarteirão todo cercado pelos jovens, os reis da rua, esperando ansiosamente sua saída.
Ia ser uma festa (chamávamos assim as brigas de rua) das boas.
O descuidado estava louco para que o Rapa chegasse logo, livrando-o da turba ensandecida.
Quando chegou a rádio patrulha ele entrou como um foguete na viatura com os olhos arregalados de medo.
Havia mais solidariedade e caráter nos cidadãos.
Desnecessário um estatuto de idosos.
Os mais velhos eram respeitados naturalmente e, na maioria das vezes, temidos por sua energia moral e pelo acúmulo de experiências. Nos transportes urbanos não ficavam de pé. Nem eles nem as mulheres grávidas ou não. Era natural e bonito ceder lugares, respeitosamente, a essas pessoas.
Isso nos anos sessenta - não se passou tanto tempo - pelo menos eu penso assim.
Não tínhamos medo da polícia e sim dos nossos pais.
- É gente, o Pelé sumiu de vez!
Observação e preocupação própria de uma grande família.
- Ninguém saber onde ele mora é um absurdo! -comentário geral.
Todos com o coração apertado de tantas especulações e alimentando sentimento de culpa.
Chegaram a dizer que fora atropelado por um ônibus.
Outros afirmavam de maneira convicta que um empresário de cinema do Rio de Janeiro reconheceu seu talento levando-o embora.
Esse caso nunca foi muito bem explicado.
Mas Pelé não era só um amigo; era irmão.
Entramos em contato com a polícia, o Pronto Socorro, a Santa Casa e nada...
Quando nunca mais se vê um amigo, ele não envelhece na memória.
Até hoje, quase quarenta anos depois, nas poucas vezes que passo por ali, vejo com os olhos do coração um menino alegre batucando seu instrumento de trabalho.

(...)

Fred, 09/01/2011

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