sábado, 1 de janeiro de 2011

Um Caso do Outro Mundo


(Fragmento do livro Álcool Ajuda ou Autoajuda - Fred Explica - 1999)
Nota: Os textos postados neste blog não obedecem a nenhuma ordem cronológica.
ZZFred
(...)


"Eu vou entrar em concentração, respirar fundo, invocar a entidade mentalmente e quando me ver curvado, mãos para trás, é sinal de que ela está presente"


Anos sessenta 




Jorge, outra figura de nossas relações, tinha um perfil sinistro. 

Amigo de poucas horas. 

Raramente participava das rotinas da turma.
Dezessete anos, estatura mediana, impressionava pela quantidade de pelos que o cobria. Barba prematuramente espessa. Sobrancelhas, braços e pernas com longos fios de cabelos extremamente pretos.
Segundo comentários, sua família era praticante de rituais macabros de magia negra. Ele dizia que era Quimbanda, uma religião de africanos que cultuavam os segredos e as energias da natureza. 
Os céticos como eu, na época, não acreditavam em narrativas tão cheias de detalhes sombrios. 
Mas, por via das dúvidas, nunca nos aventurávamos em seu apartamento. 
Contava-se que por lá havia uma cabeça de bode na geladeira e que, quando a retirassem, uma pessoa no hospital morreria, ficando livre do sofrimento que lhe causara um feitiço encomendado.
É a velha e batida história: eu não acredito nas bruxas, mas, que elas existem, existem!
Numa tarde de verão Jorge me procurou em casa.
- Fred, preciso de um grande favor. Amanhã bem cedo tenho que fazer os exames médicos para ser engajado no exército. Vou incorporar uma entidade, o Sete Facadas, e queria que pedisse a ele para providenciar minha dispensa. 
Fiquei meio assustado diante da situação. 
Apesar de um tanto curioso, eu era de formação católica. Entretanto, para não fugir ao pedido e talvez, até, em função do machismo, resolvi atender solicitando, todavia, instruções de como proceder diante do espírito. 
- Você faz o seguinte, explicou. Eu vou entrar em concentração, respirar fundo, invocar a entidade mentalmente e quando me ver curvado, mãos para trás, é sinal de que ela está presente. Diga que, saindo daqui eu, Jorge, vou até o Mercado Central – ele saberá pra que. Faça o pedido em meu nome e determine que ele se retire. Ocorrendo qualquer resistência, coloque um crucifixo em sua direção. Ele partirá imediatamente. 
- OK, manda brasa, falei com ar debochado.
Confesso, trinta e dois anos depois, que os fatos impressionaram.
Jorge se curvou como um velho. 
Descalço, começou a arranhar com as unhas dos pés os tacos do meu quarto, deixando sulcos nos locais. 
Dirigiu-me um noite!(queria dizer boa noite) com uma voz cavernosa, e iniciamos o diálogo.
- Boa tarde, você quer dizer, corrigi em seguida.
- É; pode ser; onde estou é sempre escuro. Me arruma um pau branco aí – pediu, apontando para o maço de cigarros Minister. 
Achei esquisito, Jorge habitualmente não fumava, todavia, como ali deveria estar outra pessoa, atendi prontamente. 
Como se estivesse em abstinência consumiu avidamente o primeiro até derreter o filtro. 
Em seguida pediu outro já, então, mais tranqüilo.
- O quê que o meu cavalo tá quereno? – falou sua voz rouca e imperativa. 
Passei rapidamente a missão que lhe fora atribuída, conforme o combinado.
- Aquele filho da mãe só quer moleza, ele tem é que sofrer. Chama aquela .... lá dentro, resmungou.
Como só estavam em casa eu e minha mãe, deixei de lado a cerimônia e parti pra cima do ofensor pedindo respeito, dizendo que se retirasse e ameaçando buscar o crucifixo.
- Eu te derrubo, tentou intimidar.
- E eu passo por cima de você, respondi vermelho de raiva.
Bastou minha indignação e a decisão de enfrentar a fera para que começasse numa respiração profunda e o Jorge logo voltasse querendo saber dos acontecimentos.
Fiz um breve relato, ainda querendo briga. 
Jorge tratou de se desculpar pelo outro, com a educação que lhe era peculiar, explicando, em resumo, os detalhes daquelas manifestações. 
Com a cabeça girando em face de uma situação incomum e assustadora aceitei provisoriamente seus argumentos pedindo que nunca mais trouxesse aquele tipo de coisa para dentro da minha casa.
Quando relatei o episódio numa roda de amigos, logo vieram as gozações: o Jorge estuda teatro, ele estava curtindo com você – conta essa pra outro, deixa de ser bobo cara – ele fez isso pra te assustar e você caiu na dele.
Passado algum tempo fui procurado pela mesma turma narrando o seguinte: Fred, você estava certo, cara! Ficamos curiosos e fizemos uma reunião no apartamento do Dom. Umas dez pessoas no quarto e, quando baixou o santo, não ficou alma viva. O Marreco se enfiou debaixo da cama. Como não dava para passar pela porta o pessoal saiu pela janela que dava para a varanda, da varanda para a sala e da sala para fora do apartamento em desabada correria. Não fosse a intervenção do senhor Geraldo, o pai do Dom, que era espírita Kardecista, a entidade ainda estaria por lá e o Marreco, coitado, sem ter por onde sair. 
Um verdadeiro alívio ficar sem a pecha de idiota. 
Tirei o maior sarro do pessoal. 
- Eu enfrentei o problema sem ajuda. Vocês todos não agüentaram um minuto, bando de maricas!
Na realidade também tive momentos de pavor, mas, fui obrigado a resolver sozinho. 
Não tinha outro jeito.


(...)

Fred, 01/01/2011

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