sábado, 16 de abril de 2011

Do profano ao sagrado


(Fragmento do livro Álcool Ajuda ou Autoajuda - Fred Explica - 1999)
Nota: Os textos postados neste blog não obedecem a nenhuma ordem cronológica.
(...)



"O espírito contestador sempre falou mais alto. Até hoje considero o casamento como uma obra que não tem fim. Chegando a hora de reformar que se reforme, mas, nunca e simplesmente, se deve derrubar a casa."



Tive um romance boêmio no estilo da história de Hilda Furacão, do Roberto Drumond.
Foram quase dois anos de um caso de amor enrustido inconscientemente  pelas fronteiras da sociedade.
Um aprendizado poderoso em experiências do mundo.
Devo muito àquela mulher.
Aprendi a respeitar o sexo oposto.
Sua força, independência e fidelidade por paradoxal que possa parecer, marcaram minha alma.
Não deixava perceber, machista que era, o quanto me impressionava seus conceitos sobre todas as coisas.
Mais, até, que sua beleza física, do seu interior ofuscava um brilho incomum.
Durou dos dezoito aos vinte anos, mais ou menos.
Depois resolvi me enquadrar nos moldes familiares.
Morava em apartamento térreo de um velho prédio da Rua Padre Belchior onde, até outro dia, passou a funcionar uma loja comercial.
A região há muito deixou de ser residencial.
É uma rua no centro da capital mineira que se inicia no cruzamento da Avenida Augusto de Lima com Rua São Paulo.
Meu quarto, sua janela de madeira com venezianas, dava para a calçada.
Um dos mananciais do Ribeirão Arrudas passava em frente, cercado por muretas antigas. Era um esgoto a céu aberto que não deixava odores desagradáveis no ar devido à profundidade do córrego e a rapidez das suas águas.
As muretas com cerca de um metro de altura foram os assentos dos jovens enclausurados dos edifícios.
A calçada que separava meu apartamento da rua era muito estreita, uns oitenta centímetros, e os veículos passavam rente à minha janela.
Lembro-me que as noites e as madrugadas de sexta-feira eram infernais.
Dia de abastecimento do Mercado Central que se localizava uns duzentos metros dali.
Uma depressão - dessas que a prefeitura mexe, mexe e não conserta - no asfalto logo defronte meu quarto, promovia um barulho insuportável além de sacudir as bases do antigo prédio quando passavam os caminhões em plena carga.
O carregamento de galinhas era patético, pois simultaneamente, além do barulho, da trepidação e do bater dos engradados que as transportavam, vinha o cacarejar das aves que acordavam assustadas - elas e a quem estivesse dormindo na região.
Bacatrum...Pláaaaa... Cráaaa...Cuóooooo!!!
Nesse dia, chegar cedo em casa, nem pensar. Acabaria me tornando um cardíaco precoce.
Isso proporcionava mais um pretexto para acompanhar meus companheiros pela cidade até a madrugada.
Durante o dia gostava de ficar à janela pensando e apreciando o movimento.
À tarde, por volta das quinze horas uma jovem com seus quatorze aninhos passava por ali, religiosamente, para as compras na Padaria Triunfo.
Não gostava muito daquelas garotinhas. Preferia mulheres mais maduras que eu.
Entretanto, não deixava de admirar sua graça e certo dia, absorto em divagações, imaginei:
- Quem sabe no futuro eu poderia estar casado com uma mulher como ela, mas, a ninguém é dado este tipo de presciência.
– Bobagem; pensei em seguida. É atraente, mas a diferença de idade não permitiria a relação.
Uma distância de seis anos, mais ou menos.
Mal sabia o que o futuro estava reservando.
Numa oportunidade fomos apresentados por um amigo.
Conheci, então, uma pessoa  especial.
A singularidade do seu olhar mostrando sabedoria e mistério eram impróprios à sua idade e ao preconceito que eu já estava deixando de lado.
O experiente do bordel se encantava, agora, com outros atributos.

No perfume dos raios do sol
Na aurora da sua presença
Na paz do azul do céu
No encontro da única esperança
Faz-se calma a face do vento
No aroma das gotas de orvalho
Dá-se luz, suave alento.
No teu colo me deito, espalho.
Meu querer de cachorro manhoso
Preguiçoso se esconde em você
No calor desse colo cheiroso
Vou dormir vou querer seu querer.


Assumi novamente a humildade do aprendiz.
Enxergar a vida com suavidade e meiguice.
Ter a capacidade de chegar a ser criança outra vez.
À minha frente estava a oportunidade de recuperar valores, parar de envelhecer prematuramente, reduzir os aditivos etílicos e os embalos da época.
"Eis que chega roda viva e carrega o destino pra lá" (Chico Buarque)
Em dois anos namoramos, noivamos e nos casamos na Igrejinha de São Francisco da Pampulha.
Com muita dificuldade conseguimos nos unir em local muito concorrido, visto que nos identificaria com a cidade para o resto da vida.
Ponto turístico e obra muito conhecida de Oscar Niemeyer.
A Pampulha era cúmplice da nossa relação.
O Ser Humano tem uma tendência muito forte para criar pequenos mundos, pequenos guetos, pequenas zonas de conforto. São as turminhas da escola, da esquina, do trabalho, do clube, da família, da igreja e do bar. Quando abre seu espírito para algo maior a experiência é maravilhosa. Está relacionada com a realização como pessoa e com a realidade universal.
Não temos nenhum controle sobre o nosso futuro.
Será o estilo de vida de cada um é que acaba por defini-lo?
Conheço pessoas bem organizadas.
Construíram seus ideais como uma receita de bolo.
Estudaram muito, passaram no vestibular com louvor, tornaram-se doutores em alguma coisa, arranjaram um bom emprego, casaram e tiveram filhos.
Desses, a maioria está em outro casamento ou, em muitos casos no enésimo.
Acredito, por terem passado muito tempo dedicando-se aos livros técnicos de suas profissões e a ganhar dinheiro, foram conhecer os prazeres da vida na hora errada.
Perdoe-me o leitor, se é que vai existir algum, pois costumo divagar muito, sair da direção e depois, para recomeçar, é um Deus nos acuda!
Voltando a relação agora matrimonial, assumi um casamento realizado nos moldes tradicionais.
Vieram três filhos adoráveis: duas mulheres e um homem. 
Veio o trabalho e um curso de Economia iniciado em setenta e um e deixado pela metade a contra gosto de meu pai que me presenteara com um Whisky Ballantines antigo quando passei no vestibular, condicionando sua degustação ao dia da minha formatura.
Até hoje tenho a bebida guardada na prateleira.
Transferi a responsabilidade ao meu filho que faz Administração de Empresas.
Casamento exemplar.
Trinta e quatro anos de um afeto que amadurece sem as rugas do tempo.
Uma filha se tornou jornalista e outra pedagoga.
Os amigos brincam que estamos fora de moda.
O espírito contestador sempre falou mais alto.
Até hoje considero o casamento como uma obra que não tem fim.
Chegando a hora de reformar que se reforme, mas, nunca e simplesmente, se deve derrubar a casa.
Acredito que o modismo interfere até nas relações pessoais.
Longe de ter-me feito um cidadão enquadrado em qualquer parâmetro da sociedade de consumo, continuava às voltas com as questões do meu interior, evitando sempre o comportamento da maioria.
Isso me custou muitos balcões de bar, incontáveis doses alcoólicas e broncas familiares cheias de preocupações.
(...)
Fred, 16/04/2011

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